Coronavírus

A pandemia foi uma vacina contra o populismo

Foto: Tiago Miranda
Foto: Tiago Miranda

O primeiro grande estudo que analisa as consequências políticas da
pandemia aponta para uma recusa do populismo e a defesa de governos tecnocráticos

O estudo foi feito pela Universidade de Cambridge, chama-se “O grande reinício – opinião pública, populismo e pandemia” e é a primeira análise detalhada à forma como a crise provocada pelo vírus Covid-19 alterou a opções e crenças políticas dos cidadãos. O trabalho acedeu a inquéritos de 27 países abrangendo mais de 81 mil pessoas, comparando-os com dados desde 1958. A principal conclusão é que a pandemia reverteu o apoio às plataformas populistas, aos políticos que as defendem e às suas ideias. Na Europa, a intenção de voto em partidos populistas baixou 11%, liderando a crise global do populismo. Mas nem tudo são boas notícias, pois o apoio ao modelo de democracia liberal também baixou durante a pandemia.

A enorme pesquisa aponta três razões para a crise das ideias populistas: desde logo a forma incompetente como os populistas no poder geriram a crise pandémica; em segundo lugar, o reconhecimento de que uma crise comum ajuda a unir cidadãos e comunidades, afastando-os de um discurso fraturante; e por fim o facto de as soluções implementadas pela maioria dos governos ter ajudado a reduzir a desigualdade económica. Tudo isto parte da premissa conhecida de que o discurso populista se baseia tradicionalmente em três aspetos que ficaram postos em causa com a pandemia. O primeiro é que se deve desconfiar das instituições, porque elas servem os interesses instalados; o segundo consiste na narrativa do ´nós contra eles´, sendo que a ´eles´ corresponde uma difusa ideia de elite que estaria contra os cidadãos; o terceiro aspeto comum a todos os populistas, quer sejam eles comentadores da Fox News ou líderes de partidos de extrema-direita na Europa, é a desconfiança face aos especialistas.

Ora, a crise pandémica afetou a todos por igual e levou a maioria dos governos a adotar soluções igualitárias, que acabaram por proteger melhor os cidadãos mais frágeis – tendo como consequência imediata o reforço da confiança nos líderes tradicionais. E também nos especialistas, que foram os que apresentaram caminhos credíveis que mobilizaram as populações, expondo as limitações populistas que normalmente optaram por teorias da conspiração. O que fica claro do estudo global é que, face a uma crise complexa, as soluções simplistas apresentadas pelas forças políticas mais demagógicas deixaram de convencer os eleitores. E onde essas limitações foram mais notadas foi nos locais onde os populistas estiveram no poder durante os últimos dois anos. Países como os Estados Unidos, onde Trump propôs a utilização de derivados de lixívia, ou Bolsonaro, que defendeu a ideia de que a pandemia era apenas uma “gripezinha”, viram a sua base de apoio reduzir-se de forma mais ou menos acentuada. E na Europa, movimentos como o Cinco Estrelas italiano e o Fidezs hungaro sentiram o início do eclipse dos apoiantes, com reflexo nos processos eleitorais em curso (tal como o ex-primeiro ministro checo Babis sentiu nas eleições de dezembro). Mas também nos países onde os populistas são oposição, nota-se uma erosão de clara da confiança dos eleitores nas suas propostas: um pouco por toda a Europa ficou marcada a subida na credibilidade de partidos do centro, contra as opções mais radicais das faixas extremistas. Roberto Foa, primeiro autor do estudo e um dos diretores do Centro para o Futuro da Democracia, confirma este facto: “O apoio eleitoral aos partidos populistas entrou em colapso em todo o mundo, de uma forma que não tem equivalente nos partidos políticos mais tradicionais. Há fortes indícios de que a pandemia limitou seriamente o aumento do populismo.”

Outro aspeto que se retira da pesquisa é que a ideia de democracia liberal em si mesma não está totalmente protegida. Há vários indicadores que apontam para uma maior adesão a soluções menos convencionais como a restrição das liberdades individuais e a vontade de ter líderes fortes. A crença de que a democracia é o melhor sistema também caiu durante a pandemia, com os setores mais idosos das populações a serem os mais críticos do sistema tradicional. Confrontado com o facto de que essa crítica venha de uma crescente desigualdade, Foa afirmou em exclusivo ao EXPRESSO que “durante a pandemia, muitas destas pressões sociais foram efetivamente reduzidas na maioria dos países desenvolvidos, graças aos pacotes de apoio ao emprego e ao reforço da segurança social”. E aponta para outro estudo da sua autoria, prestes a ser publicado, que revela que “a desigualdade no que toca ao bem-estar caiu de forma significativa durante a pandemia”. E mesmo assim as críticas à democracia permaneceram nas faixas mais idosas, o que é motivo para preocupação, como é alias amplamente referido no estudo. Seja como for, o que este estudo confirma em absoluto é que os países que apanharam líderes populistas no poder durante a pandemia podem ter já ficado vacinados contra os perigos do populismo; os outros tiveram sorte, porque tiveram melhores políticas, mas ainda não se livraram do espectro. O que parece claro é que cada vez menos eleitores querem um líder populista no poder quando um problema sério e transversal como a pandemia afeta o mundo.

Mesmo os países onde as forças populistas de extrema-direita chegaram mais tarde ao espectro político, e que por isso ainda estarão dentro de um ciclo autónomo, sentem esta mudança nas atitudes face aos populistas. Como revela também ao Expresso outro autor do estudo, Xavier Romero-Vidal, “um bom indicador para testar esse facto é a transição do voto: quando um partido que está no poder perde votos, eles tendem a migrar para outra solução credível de poder e não para as franjas mais extremistas da oferta partidária. É semelhante ao que aconteceu na Alemanha, em que nas eleições de setembro a CDU de Angela Merkel perdeu poder mas em que os seus votos migraram para o SPD e não para os extremistas da AFD.”

Já é mais difícil saber se esta será uma tendência de longo prazo, mas o mesmo investigador está convencido que sim. “Os eleitores mais jovens (menos de 35 anos) são os que tendem a optar de forma mais decidida por partidos do centro político, pelo que os últimos anos podem ajudar a mudar o cenário político dos próximos anos.” E Romero-Vidal refere ainda outro ponto, o que se prende com as políticas postas em prática pelos governos credíveis, que ajudaram a evitar a falência do estado social: “essas políticas, que tentaram manter a coesão territorial e preveniram o aumento da desigualdade, tiveram o seu efeito nos agentes políticos mas poderão também tê-lo a longo prazo nas dinâmicas políticas. Os nossos dados apontam para uma maior coesão  regional, o que ajuda à escolha dos partidos mais credíveis no sistema partidário.”

Tudo isto ajuda a explicar a falta de apoio para opções mais radicais na política. Uma questão que foi referida por vários cientistas políticos na Alemanha aquando das eleições de setembro foi a não-subida dos extremistas da AfD, que ficaram presos a um teto à volta dos 10% – isso explica-se com a falta de credibilidade das suas soluções. De facto, parece irrelevante discutir penas maiores para alguns crimes ou apertar a perseguição a minorias quando o que está em causa é uma pandemia global que afeta todos os cidadãos por igual. E este estudo acaba por apontar caminhos para manter a coesão social e reduzir a relevância de ideias tribalistas: combater a desigualdade e promover políticas tecnocráticas parece mesmo ser a melhor forma de reduzir o apelo populista.

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