Coronavírus

O que sabemos da Sputnik V, a vacina russa: está registada em 25 países, é produzida em cinco e tem uma eficácia de 91,6%

O que sabemos da Sputnik V, a vacina russa: está registada em 25 países, é produzida em cinco e tem uma eficácia de 91,6%
SERGEI ILNITSKY

Imunizante já foi registado na Hungria e há mais quatro países da União Europeia a "namorá-lo", mesmo antes da análise da Agência Europeia do Medicamento: República Checa, Eslováquia, Croácia e Áustria. Ouvido pelo Expresso em fevereiro, o virologista Pedro Simas considerou que a Europa "deve abrir a porta à vacina da Rússia"

Terça-feira, 11 de agosto de 2020. Vladimir Putin anunciou que a Rússia acabara de registar a vacina contra a covid-19. Foi a primeira vacina registada contra o novo coronavírus no mundo. O Presidente russo acrescentou até que uma das suas filhas tinha sido vacinada com uma dose da vacina, revelando, apesar da ligeira febre, estar a sentir-se bem. A velocidade com que surgiu o fármaco e as suas virtudes foram recebidas com desconfiança pela comunidade científica internacional, mas o vento parece estar a mudar.

Quinta-feira, 4 de março de 2021. Depois de Hungria, Montenegro e Sérvia já terem começado a vacinar as populações com a Sputnik V (o que não significa que seja em exclusividade), a Europa vai abrindo a porta àquela vacina. Esta manhã chegou outro sinal animador para os lados do Kremlin: a Agência Europeia Medicamento (EMA) anunciou que está a analisar a Sputnik V.

A agência "avaliará a conformidade da Sputnik V com os requisitos habituais da UE em termos de eficácia, segurança e qualidade", explicou em comunicado, ressalvando que não pode prever prazos para decisões e que um parecer sobre um eventual pedido de comercialização "deverá levar menos tempo do que o normal", devido ao trabalho realizado durante esta revisão contínua. Esta denominada "revisão contínua" é um instrumento regulador que a EMA utiliza para acelerar a avaliação de um medicamento promissor durante uma emergência de saúde pública, já que, ao rever os dados em tempo real, à medida que estes ficam disponíveis, pode chegar mais cedo a um parecer final sobre a autorização de comercialização, quando esta der entrada.

A vacina Sputnik V revelou uma eficácia de 91,6% contra as formas sintomáticas da doença, segundo resultados publicados no início de fevereiro na revista médica “The Lancet” e validados por especialistas independentes. "O desenvolvimento da Sputnik V tem sido criticado pela sua precipitação, por ter saltado etapas e pela falta de transparência, mas os resultados são claros e o princípio científico dessa vacinação está demonstrado", estimaram então dois especialistas britânicos, Ian Jones e Polly Roy, num comentário anexado ao estudo. Isto "significa que uma vacina extra pode ser acrescentada à luta contra a covid-19", insistiram os dois investigadores, que não participaram no estudo.

Vacina tem a mesma técnica da AstraZeneca

Como a podemos definir? A Sputnik V é uma vacina de vetor viral, ou seja, utiliza outros vírus tornados inofensivos para o organismo humano e adaptados para combater a covid-19. Trata-se da mesma técnica utilizada pela vacina da AstraZeneca (Oxford), que apresenta uma eficácia de 60%, segundo a EMA. Enquanto a vacina da AstraZeneca se baseia num único adenovírus de chimpanzé, a Sputnik V utiliza dois adenovírus humanos diferentes para cada uma das injeções.

Ao Expresso, o virologista Paulo Paixão explicou o porquê de algumas reticências no início do processo: “A vacina russa foi apresentada muito cedo: uma manobra política numa altura em que ainda não tinham sido publicados os resultados da fase 2 dos ensaios clínicos. Isso mina a credibilidade de uma vacina”. A própria ministra da Saúde, Marta Temido, preferiu a cautela em agosto: “É muito importante acelerar o processo de investigação em relação à descoberta de uma vacina eficaz, mas não podemos, nesse processo, sacrificar nem a segurança nem a eficácia terapêutica”. Temido disse então, sobre a Sputnik V, que havia informações de que a fase 3, de testagem na comunidade, “não terá sido, eventualmente, totalmente realizada”.

Paulo Paixão, ouvido no início de fevereiro, admitiu estar “agradavelmente surpreendido” com a solução encontrada por Moscovo. E continuou: “Este último ensaio estava bem feito, com estes dados conseguimos ver que a vacina funciona, não há problemas nenhuns”. O virologista Pedro Simas, ouvido para o mesmo artigo, seguiu na mesma estrada do contributo anterior: “Os russos não cumpriram os procedimentos científicos corretos nos ensaios clínicos, mas a base científica do projeto nunca foi criticada, até porque já tinha dado provas da sua eficácia aquando da vacina do ébola. Agora os ensaios foram cumpridos, por isso não há nenhuma razão para não ser usada.”

E acrescentou: “A ciência é universal. A Europa deve abrir a porta à vacina da Rússia, claro que sim: avaliá-la, autorizá-la, e depois comprá-la, da mesma forma que a vacina chinesa deve ser usada se cumprir todos os ensaios clínicos [ainda em andamento] e for aprovada”, diz. Segundo Simes, Portugal devia estar na linha da frente deste processo: “A lei diz que qualquer país é soberano para tomar as suas decisões, por isso é possível aprovarmos unilateralmente a vacina russa. Mas não recomendo isso. Estamos no espaço europeu, portanto devemos usar esses mecanismos.”

Vacina já está registada em 25 países

Os bons indicadores têm levado a uma forte procura desta vacina por parte de vários países do mundo. Segundo o site oficial da vacina, que pertence ao Fundo de Investimento Direto Russo (RDIF, o fundo de riqueza soberana da Federação Russa), Montenegro e o arquipélago de São Vicente e Granadinas foram os últimos a registar a Sputnik V. Esta lista é composta por outros 24 países: Rússia, Bielorrússia, Argentina, Bolívia, Sérvia, Argélia, Palestina, Venezuela, Paraguai, Turcomenistão, Hungria, Emirados Árabes Unidos, Irão, República da Guiné, Tunísia, Arménia, México, Nicarágua, Bósnia-Herzegovina, Líbano, Myanmar, Paquistão, Mongólia e Bahrein.

No início de fevereiro, o Kremlin deu conta de que queria aumentar a produção da sua vacina no estrangeiro. "Num futuro próximo, queremos iniciar a produção em países estrangeiros para responder à procura crescente em cada vez mais países", disse então Dmitri Peskov, o porta-voz do Executivo russo, na conferência de imprensa regular.

O Expresso já escrevera que a Rússia apresenta uma capacidade limitada para produzir a sua vacina e por isso o RDIF, o fundo estatal que controla a distribuição, tem procurado fechar acordos com países onde a indústria farmacêutica está mais desenvolvida, incluindo nesses acordos cláusulas que permitem à Rússia receber milhões de doses da sua própria vacina e assim proteger a sua população. Além da Rússia, são quatro os países que produzem a Sputnik V: Cazaquistão, Índia, Coreia do Sul e Brasil.

Em meados de fevereiro, o fundo estatal adiantou ao Financial Times que havia assinado contratos de produção com 15 empresas em dez países, o que se traduziria em 1,4 mil milhões de doses, isto é, o suficiente para vacinar 700 milhões de pessoas. Mais: alguns destes países - como a China, a Índia ou a Coreia do Sul - vão produzir a Sputnik V para exportá-la para outros locais, enquanto outros - como o Brasil e a Sérvia - terão de se preocupar apenas com o seu próprio mercado interno.

Outro cenário que se pode verificar, devido ao atraso de receção de vacinas na União Europeia (UE), que negociou e encomendou vacinas como um bloco, é alguns Estados-membros anteciparem-se e resolverem o seu problema com soluções periféricas, mesmo que sejam fármacos por aprovar pela EMA, como fez a Hungria, a única nação da UE neste registo.

O caso checo e mais três candidatos da UE

Essa eventualidade observou-se aliás nas declarações do Presidente da República Checa, a 28 de fevereiro, aqui citadas pela Al Jazeera, numa altura em que o país tinha a mais alta taxa de infeção do mundo. As novas variantes do vírus castigaram aquele país nas últimas semanas, pelo que Milos Zeman afirmou o seguinte num canal televisivo: “Depois de consultar o primeiro-ministro, enviei uma carta a Vladimir Putin, pedindo-lhe um fornecimento da vacina Sputnik. Informações da embaixada russa sugerem que as vacinas podem chegar nos próximos dias”, admitiu então. Zeman não se ficou por aí e abriu a porta também à vacina Sinopharm, produzida pela China, que também não foi aprovada pela EMA.

O primeiro-ministro checo, Andrej Babis, reforçou as palavras do Presidente: “Não podemos esperar pela Agência Europeia do Medicamento quando a Rússia não se candidatou [para a aprovação]”, disse. O primeiro-ministro afirmou ainda que a aprovação do gabinete equivalente ao Infarmed será suficiente para o processo avançar. Presidente e chefe de Governo já receberam a vacina da Pfizer/BioNTech.

Para além da República Checa, também a Eslováquia, Croácia e Áustria mostraram interesse na Sputnik V, o que pode desencadear um choque entre blocos de leste e ocidental. A Eslováquia já adquiriu mesmo algumas doses da vacina e já as está a administrar, depois de uma operação secretamente orquestrada por Igor Matovic, o primeiro-ministro daquele país. Antes, esta intenção gerou mal-estar na coligação de direita que governa a Eslováquia, levando a um veto, algo ultrapassado há poucos dias.

Um sinal de que este tema galgou as fronteiras da crise sanitária foi a intervenção de Ursula von der Leyen, a presidente da Comissão Europeia, em meados de fevereiro, que questionou o Governo russo por estar a oferecer a venda de milhões de doses da sua vacina a outros países numa altura em que atrasava a vacinação do seu próprio povo. “É uma questão que devíamos ver respondida”, disse Von der Leyen, aqui citada pelo “Politico”, acrescentando ainda que a Rússia teria de permitir inspeções às suas fábricas e enviar todos os dados para análise como parte do processo de aprovação regulatória.

“Após a aprovação pela EMA, seremos capazes de fornecer vacinas para 50 milhões de europeus”

As autoridades russas garantiram esta quinta-feira que poderão fornecer vacinas contra a covid-19 a 50 milhões de europeus a partir de junho, após a Agência Europeia de Medicamentos anunciar o início da análise da vacina russa Sputnik V.

“Após a aprovação pela EMA, seremos capazes de fornecer vacinas para 50 milhões de europeus a partir de junho de 2021”, disse o presidente do fundo soberano russo, Kirill Dmitriev, que contribuiu para o desenvolvimento desta vacina. “A Sputnik V pode dar uma contribuição importante para salvar milhões de vidas na Europa”, acrescentou.

“As parcerias em matéria de vacinas devem ser desvinculadas da política e a cooperação com a EMA é um exemplo perfeito de que juntar esforços é a única maneira de acabar com a pandemia”, afirmou ainda Dmitriev, destacando que o medicamento já foi aprovado por cerca de 40 países em todo o mundo.

Até ao momento, a EMA deu 'luz verde' a três vacinas para a covid-19: a da Pfizer/BioNTech (também conhecida como Comirnaty), a 21 de dezembro de 2020, a da Moderna, a 6 de janeiro, e da AstraZeneca, em 29 de janeiro, e deverá tomar na próxima semana uma decisão sobre a vacina da Johnson & Johnson, produzida pela farmacêutica Janssen

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