Covid-19. Pode o erro da vacina de Oxford ser muito acertado? “É através do erro que surgem as descobertas mais fantásticas”
Pedro Simas, investigador do Instituto de Medicina Molecular, em Lisboa
TIAGO MIRANDA
Quem o diz é Pedro Simas, em entrevista ao Expresso, a propósito da vacina desenvolvida pela farmacêutica AstraZeneca, em colaboração com a Universidade de Oxford. O virologista acredita que o erro “não foi deliberado nem ocultado”, não subscreve “qualquer teoria da conspiração”, lembra que “há muitas descobertas que só se conseguem porque as pessoas se enganaram” e dá como exemplo o “acaso” da penicilina
A vacina desenvolvida pela AstraZeneca e pela Universidade de Oxford está a ser colocada em causa, uma vez que a eficácia de 90% obtida, nos melhores casos, foi registada apenas num grupo de 2.700 voluntários, aos quais foi administrada meia dose em vez das duas, entre um universo de 24 mil pessoas que participaram nos ensaios clínicos. Isto afeta a credibilidade daquilo que foi anunciado? É dito na [revista científica] "Nature" que detetaram, num grupo grande de voluntários, reações à vacina, como febre e desconforto, que são normais — e são normais porque a vacina é uma coisa viva. Depois de uma investigação, percebeu-se que tinha sido dada uma dose inferior. Isso acontece, às vezes, em ciência. Penso que esse erro não foi deliberado nem ocultado.
Acredita, portanto, que não se trata de uma estratégia de propaganda numa eventual guerra comercial entre farmacêuticas? Nem se trata de acreditar ou deixar de acreditar. Não subscrevo qualquer teoria da conspiração. Eu leio aquilo que acho que é fidedigno. E, como cientista, sei que esses erros acontecem. A ciência é transparente. Jamais imaginaria que uma empresa como a AstraZeneca fosse comprometer uma história e uma reputação de tantos anos, além de comprometer uma operação que custou biliões, por causa de algo desse género. Não acredito nisso. O que surge agora é um pequeno problema administrativo, que tem a ver com o protocolo definido pela FDA para aprovar o uso de emergência da vacina.
E que problema administrativo é esse? Estes estudos são muito bem delineados e balizados pelas entidades reguladoras. Se o estudo deu entrada com determinadas premissas, caso haja depois alguma alteração, os resultados têm de ser equacionados. Mas, do ponto de vista científico, até é algo bastante comum. Há muitas descobertas que só se conseguem porque as pessoas se enganaram.
Consegue dar um exemplo? A penicilina foi descoberta por acaso. Alexander Fleming observou que havia uns fungos que faziam com que as bactérias ao lado não crescessem. Foi assim que se descobriu o primeiro antibiótico e já viu o impacto que teve na história da Medicina? Isto para dizer que é absolutamente normal e ainda bem que é assim. A razão pela qual a natureza biológica é tão robusta tem a ver precisamente com o facto de existir uma grande redundância que vem da diversidade. É aí que atua a evolução darwiniana. Se pegarmos num computador e mudarmos 20% do software, aquilo deixa de funcionar. Mas se pegarmos no nosso genoma e mudarmos 20% do código genético, provavelmente não notamos diferença nenhuma. É através do erro que surgem as descobertas mais fantásticas.
Esta vacina — comparativamente com as concorrentes da Pfizer e da Moderna que atingem uma eficácia média de 95% — tem uma taxa de sucesso mais oscliante, entre 62% e 90%. É normal haver uma discrepância tão acentuada na eficácia que a vacina pode ter em diferentes grupos? Isso, honestamente, até me dá mais confiança, porque os resultados foram obtidos com base em dosagens diferentes e, em função disso, há uma resposta imunológica distinta. Isso é normal. Importa também referir que são vacinas diferentes. As vacinas da Pfizer e da Moderna têm uma base tecnológica de RNA, enquanto a da AstraZeneca utiliza um vírus recombinante.
Combater o fogo com fogo? O que esta vacina faz é usar um adenovírus modificado geneticamente para não ser prejudicial; ou seja, é um vírus que é incapaz de se disseminar na pessoa que é vacinada. Serve apenas como um veículo, um transporte para produzir nas células a proteína spike. De forma resumida: é administrado um adenovírus com o gene da proteína spike do coronavírus. Esta técnica é semelhante à da vacina russa Sputnik V, que utiliza dois adenovírus, o que é bastante inteligente. Esta diversidade de abordagens vai ser muito útil para cobrimos toda a população e conseguirmos chegar a todos os casos.
Pedro Simas, virologista, em Lisboa. FOTO TM
TIAGO MIRANDA
Quais são as vantagens desta abordagem no desenvolvimento da vacina? A vacina da AstraZeneca é mais barata de produzir e comprometeu-se a vendê-la a preço de custo durante a pandemia, além de que a sua conservação é mais fácil.
E como se explica que possa ser muito mais fácil de conservar e, ao mesmo tempo, muito mais barata? O RNA é extremamente sensível e tem de ser conservado a -80º, no caso da Pfizer, para que não haja enzimas degradadas, embora a Moderna diga que consegue fazer a conservação a -4º durante um mês e a -20º durante meio ano. Já um adenovírus, como o utilizado pela vacina da AstraZeneca, consegue adaptar-se ao meio ambiente, consegue perdurar durante horas ou um dia numa superfície. Um vírus modificado é sempre mais robusto do que o RNA, porque os vírus servem precisamente para isso: para serem resistentes. Portanto, toda a tecnologia para produzir e conservar um vírus recombinante é muito mais fácil e muito menos dispendiosa. Trabalhar com RNA é um processo bem mais delicado.
Há, no entanto, um ponto em comum entre as diferentes vacinas testadas: estamos sempre a falar de duas doses. De que forma é que ambas atuam? Se dermos demasiado antigénio de uma vez, pode haver uma exaustão e pode ser prejudicial. Mas mais do que um problema quantitativo, é a necessidade de as tomas terem de ser espaçadas no tempo. A primeira dose é para fazer a ativação do sistema imunológico e, como resultado dessa ativação, produz-se uma memória imunológica. A segunda dose serve para ativar essa memória e torná-la mais específica, aumentando a magnitude da resposta imunológica. É por isso que as vacinas são administradas no tempo, com um intervalo de três a quatro semanas. Mais do que estarmos a falar de duas doses, estamos a falar de duas inoculações.