Covid-19. Apanhar transportes públicos em Lisboa pode significar “ficar ao colo uns dos outros” para “continuar a vida normal”
José Fernandes
Lisboa e Vale do Tejo reportou esta sexta-feira mais casos de infeção com o novo coronavírus do que o total nacional registado na véspera. O Expresso foi avaliar como se circula de barco, metro, comboio e autocarro em hora de ponta na região que mais tem preocupado as autoridades nos últimos dias. Mais veículos e maior fiscalização é a solução unanimemente defendida por quem depende dos transportes públicos para chegar ao emprego e voltar a casa
Susana Nunes trabalha como administrativa numa empresa de outsourcing em Oeiras. Vive no Barreiro e todos os dias gasta quatro horas no trajeto casa-trabalho-casa. De manhã, começa por apanhar um autocarro da TST – Transportes Sul do Tejo, depois o barco, em seguida o metro e, por fim, um segundo autocarro. “Quem manda nos autocarros não tem consciência daquilo que se está a passar. Não há um limite: os motoristas deixam entrar passageiros até o autocarro ficar cheio”, queixa-se.
Tal como os restantes utentes de transportes públicos da Área Metropolitana de Lisboa (AML) ouvidos pelo Expresso nas horas de ponta desta quinta e sexta-feira, Susana alerta para a necessidade de um reforço dos veículos e da fiscalização. A AML anunciou, entretanto, que irá reforçar em 90% a oferta de transportes, a partir da próxima quarta-feira, em comparação com o mesmo período do ano passado, sobretudo nos autocarros que transportam passageiros para Lisboa. A partir deste sábado, o metro da capital irá duplicar a oferta aos fins de semana, no período diurno, nas linhas azul, verde e vermelha, fazendo circular comboios de seis carruagens.
Durante o período de confinamento, a administrativa foi “sempre trabalhar” e “já estava à espera” que as infeções com o novo coronavírus aumentassem em Lisboa e Vale do Tejo com o desconfinamento. “Estou é surpreendida que quando os números começaram a subir, o Governo não tomou logo mais medidas para não se estar no estado em que estamos”, critica. E diz ainda que “há um segurança à entrada do barco só para ver quem usa máscara”, mas que o barco “não é desinfetado”, e que “no metro não há lugares sinalizados, só uns autocolantes para manter a distância” entre passageiros.
José Fernandes
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“As pessoas ficam quase ao colo umas das outras”
Rui Deitado, segurança num centro de reinserção de jovens da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, faz diariamente a travessia Barreiro-Terreiro do Paço-Barreiro. “Sentia-me mais seguro há um mês. Agora há mais pessoas, que ficam mais concentradas. Algumas sentam-se nas escadas do barco e já há pessoas que viajam de pé para evitarem estar próximas umas das outras”, relata. Quando chega a Lisboa, tem de apanhar o metro e por vezes encontra a estação do Terreiro do Paço “completamente cheia”, mesmo “numa hora muito calma”, como as 11 da noite. Por isso, sugere que o metro passe com mais regularidade e com todas as carruagens.
Rui Deitado, segurança num centro de reinserção de jovens
José Fernandes
O operador de armazém e logística Daniel Rato também faz o turno da noite. Entre o Barreiro, onde vive, e a Póvoa de Santo Adrião, onde trabalha, precisa de apanhar barco, metro, comboio e autocarro. O meio de transporte que considera menos seguro é o metro, onde tem “um bocado mais de receio”, devido à “maior afluência de pessoas” e porque “não há distanciamento”. Daniel diz que já foi testado à covid-19 na sua empresa e que deu negativo. “Mas podemos estar negativos hoje e positivos amanhã. As pessoas pensam que não acontece nada mas acontece: juntam-se e podem vir a contrair o vírus”, adverte.
Daniel Rato, operador de armazém e logística
José Fernandes
O autocarro é outro problema. “Os bancos estão colados e as pessoas ficam quase ao colo umas das outras”, reclama Imaculada Rodrigues, que vive em Lisboa mas tem uma irmã no Barreiro, que visita todas as semanas. Trabalha na Quinta das Conchas, onde “vai cuidar da patroa à noite”. Para o comboio que apanha na estação de Algueirão-Mem Martins, Maria da Glória Almeida já arranjou uma solução: “Ponho o meu saco entre o meu lugar e o outro para haver um intervalo e, até à data, não tive problemas.”
Imaculada Rodrigues, na travessia Barreiro-Terreiro do Paço
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“De vez em quando, lá passa a segurança mas é por causa do passe”
Maria da Glória também destaca a falta de fiscalização das recomendações da Direção-Geral da Saúde. “De vez em quando, lá passa a segurança mas é por causa do passe, para fiscalizar”, conta. Maria Melo, que apanha o comboio em Agualva-Cacém e depois o 114 da Vimeca para Carnaxide, sente-se “mais segura no comboio do que no autocarro”, mas “não há fiscalização” das normas de saúde pública em nenhum dos dois, refere. Mirna Veríssimo vive no Cacém, trabalha em Lisboa e tem de apanhar comboio e metro: “Não me sinto segura, mas depende do horário. Se me atraso um bocado, o comboio vem muito cheio. Era bom haver mais comboios.”
Maria Melo, na estação Agualva-Cacém
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Mirna Veríssimo, na estação Agualva-Cacém
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“Têm de arranjar autocarros alternativos. Isto está a ficar um pouco insustentável”, sublinha, por sua vez, Luís Évora, à saída da estação da Reboleira. “Todos temos de trabalhar e uma vez já fiquei sentado no chão do autocarro”, conta este pintor de construção civil. Cristalino Teixeira, que também trabalha nas obras, ficou 15 dias em casa no início da pandemia porque “estava com medo”. “Mas ficar em casa não resolve nada. Era só medo por falta de informação. Agora [com o desconfinamento], esse medo não voltou”, garante.
“Tenho de trabalhar, tenho de ganhar dinheiro, tenho de continuar a vida normal”
Leila Aiach, reformada a viver em Benfica, não ficou em casa duas semanas mas dois meses. “Só saí quando o Governo disse que podia sair. Nessa altura, senti-me segura e ir ao supermercado ou ao talho era uma necessidade”, partilha. Quando o Expresso lhe lembra que a freguesia de Santa Clara, onde se encontra, é a única do concelho de Lisboa em estado de calamidade, Leila diz: “Vim aqui pela primeira vez para visitar a Quinta de Santa Clara. Mas posso circular aqui, não posso?”.
Leila Aiach, na freguesia de Santa Clara
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Matilde Sanches também mostra alguma preocupação por se deslocar àquela freguesia lisboeta. A sua maratona de transportes começa no Montijo num autocarro da TST, segue-se o metro e depois ou vai a pé ou de autocarro até à casa onde trabalha como babysitter. “Deixa-me mais receosa por causa dos meus parentes mais velhos. Mas tenho de trabalhar, tenho de ganhar dinheiro, tenho de continuar a vida normal”, resume num só fôlego.