Coronavírus

Covid-19. Como está a saúde mental de médicos e enfermeiros? “Há o sentimento de uma vida quase paralela”

Covid-19. Como está a saúde mental de médicos e enfermeiros? “Há o sentimento de uma vida quase paralela”
GEORGES GOBET/AFP/Getty Images

Como médicos, enfermeiros e outros profissionais lidam com os seus próprios problemas de saúde mental nesta altura crítica, segundo a psiquiatra Teresa Maia

Luís M. Faria

Jornalista

Os profissionais de saúde veem-se, atualmente, confrontados com riscos reais e dilemas éticos que ninguém teria imaginado até há poucos meses, mas os efeitos sobre a sua saúde mental não têm sido muito abordados. Teresa Maia, diretora do departamento de saúde mental do Hospital Fernando Fonseca, na Amadora, é coordenadora regional de saúde mental na Região de Lisboa e Vale do Tejo. O Expresso falou com esta psiquiatra sobre os desafios específicos que a pandemia coloca aos profissionais de saúde.

"Estamos numa situação que é completamente fora daquilo que qualquer de nós imaginava há um mês e que é extremamente exigente sob vários pontos de vista", começa por dizer. "Um dos desafios tem a ver com a alteração completa das nossas rotinas, com aquilo que nos organiza os dias. Às vezes nem sei bem que dia da semana é".

Menciona dois receios, um previsível e outro que talvez o seja menos para quem se encontra fora do sistema: "Está sempre muito presente o risco de nos contagiarmos e de contaminarmos os outros, seja a família ou os colegas. Outro medo é o de não estar à altura. Estamos todos a fazer coisas diferentes daquilo que é a nossa zona de conforto".

Quanto às anomalias do quotidiano com que todos temos de lidar, para os profissionais de saúde podem ser ainda mais intensas. "Há uma interrupção daquilo que é a nossa vida normal, da relação com as outras pessoas, do que fazemos. Muitas vezes as nossas famílias estão de quarentena em casa, o que dá o sentimento de uma vida quase paralela", explica. "Aparecem sintomas que é normal ter neste contexto: ansiedade, alterações do sono, um sentimento de estar sempre alerta. Isso acontece muito em todos nós. E surgem também queixas somáticas. Dores de estômago, suores, taquicardia... Sintomas físicos de ansiedade".

"Estes sintomas, como disse, são normais. Não significam que a pessoa seja menos competente. Obviamente, todos estamos mais emotivos. Irritamo-nos mais facilmente. Mas as pessoas também expressam mais facilmente coisas positivas. Não se podendo abraçar, são muito afetuosas. Estão com menos filtro. Exprimem mais facilmente a admiração e o afeto que têm umas pelas outras. Há uma noção de que são dias diferentes".

Cuidados em casa

Que cuidados especiais tomam os profissionais de saúde em casa? "Procuramos a segurança das nossas próprias famílias. Todos temos imensos cuidados ao entrar em casa, para diminuir o mais possível o risco. Por exemplo, ter à entrada um sítio onde esfregar os sapatos com desinfetante e pô-los numa caixa. Tirar o telemóvel, o relógio e os óculos para a seguir poderem ser desinfetados. Tirar a roupa e pô-la imediatamente a lavar. Tomar banho. Só se come depois de tratadas todas estas coisas".

No hospital há os equipamentos de proteção, nem sempre confortáveis. "Nalgumas áreas da urgência onde é necessária uma segurança maior eles são pesados, fazem calor, criam uma sensação física desagradável e permanente. Tudo isso condiciona, obviamente, a nossa forma de estar".

Médicos a dormir no hospital, no enquanto, parece haver poucos. Outras soluções serão mais frequentes. "Houve alguns que puseram as famílias noutro sítio e eles ficaram sozinhos em casa", diz. "Ou em casa organizam-se de outra forma, dormem noutra cama, se for possível. Têm uma série de cuidados para diminuir o risco de contágio".

Quanto às histórias sobre profissionais de saúde que notam haver pessoas a evitá-los, na rua ou noutros lugares, não lhes atribui importância. "A nossa vida agora também é muito restrita. Basicamente, hospital e casa. Não vamos muito a outros lados". Pessoalmente, ainda não viu ninguém afastar-se dela na rua, mas admite haver colegas que contam experiências dessas.

"Não é não quererem falar, mas de alguma forma têm receio, pelo facto de sermos pessoas que podemos contaminar os outros. Mas sinceramente, acho que não é nada assim tão significativo", diz. "Nós próprios é que acabamos por ser muito rigorosos e reduzimos as pessoas com quem nos damos".

Existe de facto um risco maior para os profissionais de saúde? "Sim, mas não somos só nós. Também os polícias, os bombeiros, as pessoas que trabalham em toda a rede de suporte social, que vão levar comida a casa das pessoas. Todas as pessoas mobilizadas nesta altura que estão mais em contacto com as pessoas de risco têm mais risco de se contaminar, com certeza".

Estratégias para lidar com o stress

Como é que lidam com o stress acrescido? "Temos de nos adaptar. Cumprimos tudo à risca. Percebemos que temos de nos proteger, embora isso seja incómodo".

Evita falar de medo entre os médicos. "Não gostava de traduzisse isto de maneira muito dramática. Não nos queremos deixar vencer pelo medo. É normal ter medo, mas tentamos encontrar estratégias para lidar com ele. Em termos de saúde mental, em primeiro lugar, repito, é preciso termos noção de que estas coisas que sentimos, em termos emocionais, são normais. Não quer dizer que se seja menos competente. É muito importante estarmos confiantes. Sabermos que as nossas famílias estão bem, não nos preocuparmos com isso. E se nos preocupamos, encontrar tempo para isso"

"É essencial conseguir tempo para comer, dormir, descansar", acrescenta. "Encontrar tempo para isso nas folgas e nos intervalos. Outro aspeto fundamental é encontrarmos atividades significativas para nós, no meio disto. Atividades que tenham a ver com a nossa identidade. Para uns será ver filmes, para outros tirar fotografias, ou conversar com pessoas significativas. O que quer que seja".

Outro aspeto fundamental, na sua opinião: "Manter laços com pessoas com quem possamos falar e que nos compreendam. Muitas vezes é no próprio sistema de saúde que encontramos isso. E por outro lado, manter os laços com as outras pessoas, com os nossos amigos, com a família, através do telefone, do Skype, dos meios que existem hoje em dia".

No contacto com os profissionais, destaca a importância de as pessoas se sentirem seguras umas com as outras. "Sentirem que há uma boa comunicação, que as regras são claras, porque elas estão sempre a mudar e temos de acompanhar isso. Quem coordena tem de estar ainda muito atento a pessoas que eventualmente possam estar mais frágeis num determinado momento. Porque já tiveram elas próprias episódios depressivos, ou porque estão mais sozinhas, o que quer que seja".

Linhas de apoio

Em todos os hospitais e agrupamentos de centros de saúde, existem linhas de apoio emocional para profissionais, refere Teresa Maia. "Foram criadas agora e treinadas por nós num modelo de intervenção específica neste contexto. Damos apoio emocional aos profissionais. As linhas funcionam 24 por dia, sete dias por semana".

Uma das alterações mais notórias no modo atual de funcionamento dos hospitais é a utilização de máscara, que faz com que os doentes não vejam o rosto do médico e dos outros profissionais. Teresa Maia acha que isso pode ser compensado pelo cuidado e o afeto com que eles comunicam. Mais problemático é compensar a ausência dos familiares junto dos doentes em momentos dramáticos das suas vidas.

"É muito difícil. Os profissionais de saúde também têm familiares que podem passar por situações dessas. Não poder acompanhar uma pessoa que está doente é um dos aspetos mais difíceis. Sobretudo numa fase inicial, quando as pessoas ainda estão bem. Quando começam a ficar muito mal, não têm a mesma consciência".

Também aqui, a atitude tem de ser positiva. "Aquilo que nos ajuda é focarmo-nos naquilo que podemos fazer"; diz Teresa Maia. "Não só os profissionais, mas toda a gente. Nesta altura vejo um telejornal por dia. Não tenho tempo para mais, porque estou a trabalhar. Mas ao fim de semana também não vejo. Eu sei que tenho de trabalhar, e o que nos acalma é focarmo-nos nisso. Não tanto nas notícias mais angustiantes, que não melhoram esta situação"

"Nós podemos fazer muita coisa, e o fundamental é que cada pessoa sinta que tem um papel no que está a acontecer e que tem de o cumprir", resume. "Isso faz bem aos profissionais de saúde e ajuda-nos a lidar com a situação".

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