Coronavírus

Na Síria falta tudo para tratar a covid-19: medicamentos, hospitais, informação. E será que não há mesmo casos no país? (“Deus nos ajude”)

Campo de refugiados de Ma’arrat Masrin, na província de Idlib, este mês
Campo de refugiados de Ma’arrat Masrin, na província de Idlib, este mês
Muhammed Said/Getty Images

Apesar da ligação tão próxima ao Irão, o país mais afetado do Médio Oriente, a Síria não tem qualquer caso do novo coronavírus. O governo continua a dizer que não há qualquer caso mas os profissionais de saúde têm dúvidas - o Expresso falou com dois e recolheu depoimentos de outros que querem denunciar não só a falta de condições médicas mas também a falta de informação, esse condutor do pior tipo de doenças

Na Síria falta tudo para tratar a covid-19: medicamentos, hospitais, informação. E será que não há mesmo casos no país? (“Deus nos ajude”)

Ana França

Jornalista da secção Internacional

Tratar doenças num campo de refugiados é sempre difícil mas uma doença que se espalha entre a população, como é caso das doenças infecciosas como a covid-19, é praticamente impossível. Na Síria, onde só metade dos hospitais está a funcionar depois de nove anos de guerra, o medo da propagação do vírus assusta médicos - e apavora todos os que não o são ou os que não conseguem obter da parte do governo qualquer informação credível.

Os dados “oficiais” sobre possíveis casos do novo coronavírus na Síria mostram que não existe qualquer caso no país mas, numa conversa telefónica com o Expresso, o médico sírio Munzer Khalil, responsável pelo diretório de Saúde da província de Idlib, onde pelo menos 1,3 milhões de pessoas vivem em constante estado de desespero humanitário, diz que não só é possível que já existam como, quando chegarem em força, “não vai ser possível aplicar as regras da Organização Mundial da Saúde” que já lhe chegaram, tal como a outros médicos sírios.

Munzer Khalil viu muitos hospitais serem destruídos ao longo de uma guerra que entrou neste 15 de março no décimo ano, “muitos mais desde a ofensiva que começou no início de 2019”, mas nunca saiu de Idlib, de onde é. “Por vezes os aviões russos destroem um hospital e nós montamos uma pequena sala de atendimento aos doentes ou uma sala só para as mais básicas cirurgias um noutro local qualquer e passado pouco tempo somos de novo atingidos.” Muitas acusações deste tipo já chegaram às páginas de jornais internacionais como o “New York Times”, que decidiu investigar com os seus próprios meios - fotografias de satélite, análise de relatórios governamentais secretos e de faixas de áudio com conversas entre pilotos entre outras coisas - se realmente os hospitais de Idlib estavam a ser atacados precisamente por serem hospitais. A resposta não é uma grande surpresa - a cadência dos ataques, sim.

Os mais de 200 campos de refugiados que existem em Idlib, no noroeste da Síria, na fronteira com a Turquia, “não têm condições mínimas de higiene, as pessoas não têm água potável, a comida é muito escassa e nas poucas tendas estão às vezes quatro ou cinco famílias”, explica Khalil. E pergunta: “Ora, como é que eu posso isolar pessoas que não têm casas, que vivem debaixo de árvores ou em tendas sobrelotadas ou ocupam escombros dos prédios destruídos que não têm qualquer divisão a separar quartos?”.

Numa conferência de imprensa este sábado em Damasco, o ministro da Saúde da Síria, Nizar Yazigi, disse que todos os testes de casos suspeitos em território controlado pelo governo deram negativo, segundo a agência de notícias estatal da SANA. Yazigi acrescentou que 16 passageiros e tripulantes sírios de um voo com origem no Iraque foram colocados em quarentena numa instalação de isolamento perto da capital e relembrou que já sexta-feira o ministério da Educação tinha anunciado que iria fechar escolas e universidades por precaução, enquanto as autoridades religiosas suspenderam as orações de sexta-feira, as mais importantes no islamismo.

A OMS também confirmou em comunicado, divulgado pela Al Jazeera, que não tem registo oficial de qualquer caso, apesar de também referir que a capacidade do governo em lidar com uma pandemia está “seriamente em causa” depois de nove anos de guerra e com apenas 50% dos hospitais públicos funcionais. As dúvidas, porém, não se dissipam de que já existam mesmo alguns casos na Síria - por vários motivos, sendo um deles o facto de o regime se ter negado a impedir a aterragem de voos do Irão, coisa que quase todo o mundo já fez. A 10 de março, o Observatório Sírio para os Direitos Humanos, com sede em Londres, informou que houve surtos da covid-19 nas províncias de Tartus, Damasco, Homs e Latakia, mas o governo central terá emitido uma ordem “severa” para proibir o pessoal médico de discutir o assunto.

Um outro médico, que o Expresso contactou através de Munzer Khalil mas que não quis dar o nome por estar a exercer numa zona do país já reconquistada pelo governo, refere que “o vírus está cá mas como não temos condições em todos os hospitais para testar, muitos casos que chegam aos hospitais podem ser coronavírus mas também podem ser gripe ou outro síndrome respiratório e por isso não sabemos quão disseminado está”.

Nas redes sociais é assumido que já há muitas pessoas infetadas e refere-se também o contacto estreito que o país mantém com o Irão, que não só tem ajudado o Presidente, Bashar al-Assad, na parte militar como também tem enviado mantimentos e todo o tipo de mercadorias.

Uma farmacêutica que falou à Al Jazeera, sob anonimato, relata uma corrida às farmácias, mesmo que oficialmente as pessoas não tenham informação sobre a progressão do vírus no país. “Há muito medo entre os cidadãos porque toda a gente sabe que o governo não nos vai dar qualquer informação sobre infeções e por isso eles não sabem o que se passa, só recorrendo às redes sociais”, disse a profissional.

O preço do álcool, máscaras e desinfetantes não pára de subir e as pessoas não têm todas dinheiro para manter as suas casas e mãos limpas o tempo todo com materiais clinicamente comprovados. Além disso, a estrutura hospitalar, como já nos tinha dito um outro profissional de saúde, não consegue aguentar uma epidemia. “O governo não tem a capacidade, nem o conhecimento, nem a infraestrutura para lidar com qualquer doença deste tipo. Já antes deste surto mal havia medicamentos. Deus nos ajude”, disse ainda a farmacêutica.

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