Cientistas americanos conseguiram provar que é possível gerar energia com ganhos através da fusão nuclear
Os reatores de fusão nuclear prometem abrir caminho a fontes de energia mais limpas
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Cientistas da Infraestrutura Nacional de Fusão dos EUA, em São Francisco, conseguiram produzir mais energia do que a despendida por um feixe de lasers que incidiu numa cápsula com o tamanho de um grão de pimenta. O feito inédito promete abrir caminho a uma nova fonte de energia limpa
Podia ser uma segunda-feira como as outras, mas para Jill Hruby, responsável pela Administração Nacional de Segurança Nuclear (NNSA) dos EUA, 5 de dezembro foi mesmo “um dia importante para a ciência”. E tudo porque nos laboratórios da Infraestrutura Nacional de Ignições americana (NIF), nos arredores de São Francisco, na Califórnia, o maior e mais poderoso sistema de laser do mundo conseguiu convergir 192 lasers gerando um total de 2,05 megajoules de energia num cilindro com o tamanho de um grão de pimenta – até produzir uma implosão a uma temperatura de três milhões de graus celsius.
“Por momentos, recriámos as condições existentes nas estrelas”, sublinhou Hruby. Mas o feito mais importante estava ainda por anunciar: da implosão resultaram 3,15 megajoules de energia. Ou seja, foi produzida mais energia do que aquela que foi aplicada na pequena cápsula.
“Estes são os primeiros passos para a produção de uma fonte de energia limpa capaz de revolucionar o mundo”, lembrou Jill Hruby, em conferência de imprensa realizada esta terça feira, para depois lembrar outro propósito associado a este projeto: “Agora conseguimos perceber melhor as explosões nucleares”.
O feito científico foi alcançado tendo por ponto de partida uma abordagem da fusão nuclear que é conhecida como confinamento inercial. Neste ensaio de fusão nuclear por confinamento inercial, os já referidos 192 lasers incidiram sobre duas extremidades de um cilindro a fim de atingir uma cápsula no interior que continha núcleos de trítio e deutério. Ao incidirem sobre a cápsula, os lasers geram raios-x que, por sua vez, abrem caminho a uma implosão.
Os reatores de fusão nuclear prometem abrir caminho a fontes de energia mais limpas
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Por contraponto com a fissão nuclear, que conta atualmente com várias centrais em produção de energia no mundo, a fusão confirma o próprio nome quando junta dois elementos químicos para gerar um terceiro.
No caso das implosões que têm vindo a ser desenvolvidas em laboratórios como o NIF, as fusões geram núcleos de hélio e neutrões que depois podem ser usados para a produção de mais trítio, que é escasso, a partir do lítio. É uma faceta importante para um dia se criar um sistema circular de produção de energia – mas o verdadeiro ganho do passado dia 5 de dezembro está na implosão de três milhões de graus centígrados que pode ser aproveitada para aquecer água, gerar vapor, e pôr uma turbina a girar para a produção de energia – à semelhança do que acontece com as centrais elétricas de carvão ou de fissão nuclear.
Se o entusiasmo quanto ao feito científico era indisfarçável, a ponderação acabou por dominar na hora de Jill Hruby responder aos jornalistas quanto ao tempo que será ainda necessário esperar para que esta nova tecnologia possa começar a produzir energia para circuito comercial. ”Algumas décadas de investimento podem pôr-nos a caminho de uma central de energia”, atirou a responsável pela NNSA.
Mais tarde esta previsão acabou por contrastar com o desígnio estratégico já apontada no passado recente pelo presidente dos EUA Joe Biden, que definiu como meta a construção da primeira central elétrica de fusão nuclear dentro de uma década.
Coube a Jennifer Granholm, secretária de Estado da Energia dos EUA, garantir que esse objetivo não caiu ainda, mas foi Hruby teve de lembrar que há ainda outras tecnologias a serem desenvolvidas para alcançar produção de energia com ganhos a partir da fusão nuclear, como é o caso do confinamento magnético de plasmas, que deverá ser explorado pelos reatores do ITER, que deverão começar a operar em França entre 2030 e 2032.
“Vai ser necessário escalar este ensaio para ganhos de centenas de megajoules. É algo que exige alvos [as cápsulas com trítio e deutério] maiores, mas ainda não estamos lá”, frisou Hruby.
Apesar do notável feito científico, a produção de energia não se poderá resumir a um único disparo de feixes de laser com uma duração de cinco microssegundos – e terão de ser encontradas formas de “produzir múltiplas ignições por minuto” e o abastecimento de combustíveis (trítio e deutério) de forma contínua para que esta fonte de energia limpa se torne viável comercialmente.
A lógica experimental ainda está bem patente nos números apresentados pelo NIF: com 2,2 megajoules dará para ferver um litro de água e gerar evaporação.
A concorrência com a Europa
Perante os resultados alcançados esta terça-feira, a comparação com o que já foi alcançado com a fusão nuclear por confinamento de plasmas torna-se incontornável. Até porque o reator do JET, no Reino Unido anunciou num passado recente ter alcançado num passado recente a produção produção de 59 megajoules após um “disparo” de cinco segundos - mas não logrou, ainda, um balanço positivo, que permita produzir mais energia do que aquela que é gasta para fundir núcleos dos elementos químicos.
Na China, também há resultados promissores com o confinamento magnético de plasmas - mas não são conhecidos muitos detalhes. “Os resultados do JET revelaram-se significativos na medida que se conseguiu os tais 59 megajoules durante cinco segundos, o que é um intervalo bem grande, se se tiver em conta que os plasmas são muito rápidos”, refere Bruno Gonçalves, presidente do Instituto de Plasmas e Fusão Nuclear (IPFN).
Vista aérea do reator ITER que está a ser construído em Cadarache, sul de França
O investigador português não vê como um atraso o facto de o britânico JET ainda não ter alcançado o balanço positivo anunciado pelo americano NIF. “Os resultados obtidos pelo JET validaram modelos que permitem prever que vai ser possível produzir mais energia que aquela que é gasta a produzir fusão nuclear no ITER”, acrescenta.
A abordagem inercial alcançou um feito científico inédito, mas ainda não tem a arquitetura e o modelo de produção definidos. Em contrapartida, a abordagem de confinamento magnético de plasmas já tem um modelo de produção definido para o ITER, apesar de ainda não ter garantido um balanço positivo.
“O confinamento magnético de plasmas está mais desenvolvido, e a prova disso é que já há projetos como o do ITER. Mas a abordagem do confinamento inercial [preconizada pelo NIF] era vista com ceticismo, como um beco sem saída, e agora provou-se que não era assim”, refere Orfeu Bertolami, professor da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP).
Apesar de reconhecer o valor científico ao que foi alcançado pelo NIF na Califórnia, Bertolami duvida que este feito leve a uma qualquer mundança a estratégia delineada para o ITER que vai funcionar em França e que deverá começar a operar na próxima década, mas só deverá abrir caminho ao lançamento de protótipos comerciais, possivelmente, em 2050.
“Fico estarrecido quando me dizem 2050. Por mim, logo que se consigam resolver as questões técnicas da estabilidade dos plasmas e das altas temperaturas, avançava-se logo com um reator de demonstração de produção de energia”, refere o professor da FCUP.
A competição está implícita nestes feitos científicos - e o facto de a presidência norte-americana ter apontado para um prazo de uma década a estreia do primeiro reator leva a crer que, em breve, o governo dos EUA poderá abrir cordões à bolsa para não perder a liderança face ao que se passa na Europa.
“Precisamos da participação do sector privado”, confirmou Jennifer Granholm em conferência de imprensa. Do lado de cá do Atlântico, Bruno Gonçalves recorda que os privados podem ter, realmente, uma palavra a dizer.
“É importante explorar as várias abordagens, porque até se conseguirem resultados consolidados as várias vias deverão ser tomadas como hipóteses possíveis. E neste momento há já muitas abordagens bem distintas destas duas [do confinamento magnético e do confinamento inercial] que têm vindo a ser exploradas por entidades privadas”, acrescenta o presidente do IPFN.
Explosões em vez de implosões
Se no reator as atenções estavam viradas para as implosões, fora do Laboratório Nacional Lawrence Livermore (LLNL), que alberga o NIF, ninguém escondeu que o lado bélico das explosões também ajudou a patrocinar este feito inédito. Marvin Adams, diretor do LLNL despertou uma gargalhada entre as assistência ao inventar uma suposta citação do antigo presidente dos EUA Abraham Lincoln ao dizer que o mundo não haveria de esquecer este feito, mas logo recordou que esta experiência também permite dissuadir potenciais inimigos dos EUA bem como mostra aos aliados o que já tem sido feito.
Com esta posição, o gestor dos laboratórios californianos não terá contribuído para acalmar alguma da polémica gerada por ativistas que relacionam fusão nuclear com bombas atómicas – mas a verdade é que estes ensaios contaram com um importante apoio do braço militar do governo dos EUA, que pretende recolher dados sobre o que acontece com as explosões nucleares.
“Estas experiência também foi feita para simular bombas termo-nucleares, sem ser necessário recorrer a ensaios no terreno, mas o desenvolvimento da fusão nuclear não está ligado às armas nucleares”, defende Bruno Gonçalves. “A fusão nuclear não dá origem a bombas atómicas, ainda que as experiências de confinamento inercial permitam fazer simulações de armas nucleares”, acrescenta.
Com mais ou menos polémica, a ciência haverá de continuar.
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