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Radiotelescópio SKA começou a ser montado para descobrir primeiras galáxias, mas sem deixar de passar por Barrancos

Ilustração de algumas das antenas que deverão ser instaladas no âmbito do SKA
Ilustração de algumas das antenas que deverão ser instaladas no âmbito do SKA
ALEXANDER JOE/GETTY IMAGES

Participação como membro fundador do radiotelescópio SKA já valeu às empresas portuguesas contratos de três milhões. Em 2028 deverão ficar concluída a instalação de mais de 131 mil antenas nos desertos da África do Sul e Austrália. Participação nacional é coordenada pela Agência Espacial Portuguesa

Do deserto do Karoo às primeiras galáxias formadas no Universo vão 13,4 mil milhões de anos e muitos milhões de quilómetros. E, no entanto, é a meio deste deserto sul africano, num local que se encontra a 600 quilómetros da cidade do Cabo, que vai operar um dos pontos privilegiados para a observação do Universo, com o início da instalação das antenas que compõem o radiotelescópio SKA (de Square Kilometre Array) esta segunda-feira. O SKA contempla, também, múltiplas antenas em Inyarrimanha Ilgari Bundara, na região ocidental da Austrália, a 800 quilómetros de Perth. Em 2028, quando estiver concluído, será o maior instrumento científico de todos os tempos. A avaliar pelos contratos de três milhões de euros, também há portugueses animados com a ideia de desbravar o universo.

“Em Barrancos, vamos ter a funcionar protótipos de demonstração dos sistemas de controlo de energia renovável que vão ser usados pelas várias antenas do SKA. Apenas na África do Sul e na Austrália têm sistemas destes em demonstração. Esta demonstração vai decorrer até junho”, explica Domingos Barbosa, investigador do Instituto de Telecomunicações de Aveiro (IT-A), e coordenador do Engage SKA, que representa parte do contributo científico para este radiotelescópio intercontinental.

A demonstração que vai ser instalada na vila alentejana de Barrancos valeu um investimento da Agência Nacional de Inovação de cerca de 1,5 milhões de euros para o consórcio Smart Glow, que é liderado pela empresa DST.

Mas há mais no cabaz de iniciativas que surgem devido à participação nacional no SKA: O IT-A vai fornecer uma plataforma que distribui recursos computacionais através da Internet (cloud computing) para o tratamento de dados científicos e o apoio à prestação de serviços de empresas que participam na construção e na manutenção do SKA. E a esta ferramenta haverá ainda que juntar os contributos de empresas portuguesas como a Critical Software ou a Atlar que já garantiram contratos avaliados em cerca de três milhões de euros.

Depois de alguns anos de impasse quanto à entrada no “seleto clube” de fundadores, Portugal assinou o tratado internacional do SKA em março de 2019. “A participação portuguesa irá, sem dúvida, crescer ao longo dos anos”, começa por prever Claudio Melo, gestor de projetos científicos da Agência Espacial Portuguesa (AEP), que é responsável pela representação portuguesa no SKA.

A integração de cientistas, engenheiros e empresas nacionais perfila-se como uma das missões que a AEP pretende concretizar nos próximos tempos. “E isso aplica-se não apenas aos dados que o Observatório SKA virá a disponibilizar, mas também a todo o trabalho de preparação que está em curso há mais de uma década, e que irá continuar, para que a academia a indústria portuguesas tenham capacidade para participar ativamente na construção do observatório e, mais tarde, liderar projetos científicos”, refere Claudio Lemos.

Para o SKA é, também, a hora de verdade: depois de ter registado o primeiro impulso em 2003, o projeto debateu-se com avanços e recuos mais ligados às tesourarias e às chancelarias diplomáticas que à ciência. A espera de quase 20 anos deu tempo ao consórcio para tratar igualmente da convivência de povos nativos com uma infraestrutura que, inevitavelmente, haverá de transformar a paisagem, após investimentos que já vão a caminho do correspondente a 500 milhões de euros.

A acreditar no veiculado no comunicado do SKA, não serão as comunidades locais australiana e sul-africana a manifestar-se contra as antenas: “Estamos ligados a esta Terra, independentemente de onde venhamos. Nós somos Wajarri, estamos aqui e estamos prontos para partilhar, por isso sejam bem-vindos”, reiterou Jennylyn Hamlett, representante da comunidade aborígene de Wajarri Yamaji.

Entre quem acompanha translações e rotações dos mais variados corpos celestes não restam muitas dúvidas de que a participação no grupo de fundadores do SKA é compensadora. “É fundamental o País estar nestes projetos internacionais desde o início. Em jeito de comparação, é mais ou menos como ajudar a definir o destino de um autocarro, em vez de estar à espera de apanhar boleia de um autocarro já com destino definido”, descreve José Afonso, investigador do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço.

Para os astrofísicos que pretendem estudar as primeiras galáxias, que se formaram há cerca de 13,4 mil milhões de anos após o Big Bang, o SKA faz toda a diferença. José Afonso recorda que, entre os cientistas, há a noção de que os buracos negros funcionam como “sementes” que ajudam as galáxias a formar-se – “mas não há certeza porque ainda não se conseguiu fazer esse tipo de observação”.

Além de longínquas no tempo, as primeiras galáxias ficam também demasiado distantes para serem observadas por telescópios de lentes óticas. Em contrapartida, os radiotelescópios conseguem captar sinais luminosos ou eletromagnéticos que podem ter sido emitidos por estrelas ou outros corpos celestes que, durante o tempo exigido para uma travessia tão grande, deixaram de existir.

São esses sinais eletromagnéticos que, depois de captados pelas antenas do SKA, são trabalhados como testemunhos de mundos distantes que a humanidade não conhece. “Esses sinais levam muito tempo a chegar cá [à Terra] e quando chegam são muito débeis. Para podermos identificar esses sinais precisamos de radiotelescópios mais sensíveis (como o SKA)”, acrescenta José Afonso.

O detalhe permitido pelo SKA tem por base a combinação de antenas parabólicas e antenas dipolos. Com estes dois tipos de antenas, torna-se possível captar sinais eletromagnéticos de uma grande faixa de espectro, que vai dos 50 MHz aos 15 GigaHertz.

Na África do Sul vão operar 204 antenas parabólicas, enquanto na Austrália serão montadas mais de 131 mil antenas dipolos, que captam as frequências mais baixas, explica o consórcio do SKA, em comunicado.

“As localizações das antenas foram decididas pelo facto de se encontrarem em territórios pouco povoados e que, por isso, têm baixas interferências eletromagnéticas. São locais onde não há muitos micro-ondas, telemóveis ou até motorizadas.”, sublinha Domingos Barbosa.

Com os dados recolhidos pelo SKA, os astrofísicos ficam em condições de desvendar segredos das galáxias e também poderão obter mais ensinamentos sobre a Teoria da Relatividade Geral, que foi tornada famosa por Albert Einstein, ou até de reforçar o contributo para a expansão da humanidade.

“Os dados recolhidos pelo SKA também vão ser úteis para criar sistemas de navegação interplanetários e detetar a exoplanetas com campos magnéticos similares aos da Terra, que é um dos requisitos de habitabilidade”, refere Domingos Barbosa.

Além de Portugal, o SKA conta como membros fundadores Austrália, África do Sul, Reino Unido, China, Itália, e Países Baixos. Este ano juntou-se a Suíça. Em breve deverão juntar-se o Canadá, a França, a Alemanha, a Índia, o Japão, a Coreia do Sul, Espanha e Suécia.

Domingos Barbosa, provavelmente o principal promotor da adesão de Portugal ao SKA e um dos envolvidos nos primeiros testes efetuados em território nacional com componentes do radiotelescópio, está convicto de que o esforço compensou – mesmo do ponto de vista das relações diplomáticas e institucionais.

“Este projeto já é seguido de perto pelo G20 (Grupo das maiores 20 economias do mundo). Trata-se de uma excelente oportunidade para a diplomacia científica e para o estabelecimento de boas relações entre elites e cúpulas de diferentes países. E por isso o SKA também é seguido pela UNESCO e já mereceu uma resolução de apoio do Parlamento Europeu”, conclui o coordenador do Engage SKA.

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