A comissão independente, constituída para investigar as suspeitas de assédio no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES) que envolviam Boaventura Sousa Santos e o seu assistente Bruno Sena Martins, concluiu que houve “padrões de conduta de abuso de poder e assédio” - ainda que o nome de ambos nunca é referido ao longo das 114 páginas do documento publicado esta quarta-feira.
“Da análise de toda a informação reunida, bem como das versões entre as pessoas denunciantes e pessoas denunciadas que foram compatíveis entre si, indiciam padrões de conduta de abuso de poder e assédio por parte de algumas pessoas que exerciam posições superiores na hierarquia do CES”, pode ler-se nas conclusões do relatório que vinca ainda: mesmo com “a documentação apresentada e as audições realizadas” não foi possível “esclarecer indubitavelmente a existência ou não da ocorrência de todas as situações comunicadas”.
Contactado pelo Expresso, Boaventura Sousa Santos remeteu para mais tarde uma reação, sublinhando que enviará à comunicação social um comunicado “após análise do relatório da Comissão Independente”.
De acordo com o relatório, “várias pessoas denunciantes descrevem, quer na qualidade de denunciantes, quer na qualidade de testemunhas, as mesmas situações e/ou situações semelhantes de assédio moral, sexual e abuso de poder”. Entre os comportamentos de abuso sexual relatados encontram-se “toques indesejados e não consentidos em partes do corpo como coxas, nádegas e zonas genitais; abraços demasiado longos e apertados”, “relações sexuais com pessoas em posições hierárquicas inferiores e/ou de vulnerabilidade, enquanto estas se encontravam sob efeito de substâncias (ex.: álcool) e sem condições plenas para prestar consentimento livre e esclarecido” e ainda “relações sexuais com alunas/investigadoras cuja avaliação estava diretamente dependente das pessoas que as procuravam”.
Já sobre os exemplos de assédio sexual encontram-se a “erotização de gestos e comportamentos por parte de alguns investigadores principais/professores na relação com as investigadoras/alunas”; “excessiva proximidade e contacto corporal, não autorizado e desadequado”; “beijos húmidos e demorados, olhares lascivos”; “propostas, mais ou menos subtis, de relações íntimas, sugerindo ou não, ganhos secundários e benefícios académicos como troca”. São ainda apontados pelas denunciantes a existência de “comentários sobre o corpo”, “tentativas de controlo da vida sexual de alunas” com “questões diretas sobre a vida íntima das mesmas” e “insistência para consumo de álcool por parte das alunas/investigadoras/visitantes, com o intuito de obter contacto sexual”.
A enumeração de exemplos por parte das denunciantes continua: “humilhação e desqualificação agressiva e sistemática por parte de alguns”; “isolamento de investigadores/as com base em intrigas e rumores”; “exigências excessivas e desadequadas”; desrespeito “pelos horários de descanso e da vida familiar dos/as alunos/as e investigadores/as não principais”; “contactos em horas impróprias (por vezes durante a madrugada) para tratar de assuntos não urgentes e, por vezes, para satisfação de necessidades e caprichos pessoais (como solicitações para aquisição de produtos para consumo próprio dos investigadores/as principais e/ou professores/as)”.
É ainda apontado o “uso de recursos humanos, financeiros e logísticos institucionais para fins pessoais”, o “desrespeito pelas normas e regras institucionais” e o recurso à “posição de poder ocupada para obtenção de benefícios e evitamento de sanções ou penalizações”.
A comissão independente define três categorias de envolvimento nos acontecimentos: “responsabilidade da prática do ato”, ou seja, quem abusou “diretamente do poder (o círculo do poder factual) ou que foram cúmplices em situações de abuso de poder e que tomaram decisões para proteger as pessoas denunciadas”; “tentativa de encobrimento”, pessoas que apoiaram “incondicionalmente” algum dos denunciados e que “contribuíam para as suas exigências sem questionar ou reclamar”; e, por último “negligência”, quem não se opôs nem criticou, mas defendeu os limites e manteve-se afastado, “os que ficaram na zona neutra sem visibilidade”.
A comissão para investigar “eventuais falhas institucionais e a averiguação da ocorrência das eventuais condutas antiéticas” foi criada no seguimento da publicação de um texto assinado por Lieselotte Viaene, Myie Tom e Catarina Laranjeiro, que fazia parte do livro “Má conduta sexual na Academia - Para uma Ética de Cuidado na Universidade", publicado pela prestigiada editora Routledge (o capítulo intitulado “As paredes falaram quando mais ninguém o fez” não referia nomes, mas foi retirado do livro após a polémica, o que motivou uma carta aberta assinada por centenas de investigadores a exigir à editora a reposição do texto). As três denunciantes estiveram no CES como investigadoras de pós-doutoramento e estudantes de doutoramento.
No total, a comissão classificou 14 pessoas como denunciadas e 32 como denunciantes. Há ainda entre uma e cinco pessoas consideradas como "pessoas de interesse".
Mais de um quarto das denúncias (27%) são de cariz sexual: 8% relacionada com abusos sexuais e 19% com assédio sexual. Foram ainda classificadas como “assédio moral” 28% das denúncias e 27% como “abuso de poder”.
Sem nomes dos denunciados
Contrariando o relatado pelas alegadas vítimas, os denunciados ouvidos pela comissão independente “rejeitaram ter conhecimento de situações de abuso ou assédio ocorridas dentro do CES” e justificam a situação como “um ataque ao CES, aos membros dos seus órgãos sociais, nomeadamente aos seus fundadores, por grupos feministas e com interesses próprios”.
Nos depoimentos, os denunciados negaram de forma “perentória” conhecer os factos publicamente já conhecidos. No entanto, uma “minoria confirmou vários dos factos alegados nas denúncias apresentadas pelas pessoas denunciantes”, incluindo a “existência de relações íntimas de cariz sexual entre professores/investigadores e alunas/investigadoras, e a presença de situações de assédio moral e de abuso de poder, usando a posição de superioridade hierárquica”. Contudo, não se consegue perceber que pessoas o fizeram uma vez que não há nomes.
Confrontadas com as situações em causa, as pessoas denunciadas admitem ter conhecimento dos relatos por “conversas de corredor”, desconhecendo a sua veracidade, reforçando que ao longo dos anos não foram formalmente apresentadas queixas e, que se tivessem sido, “teriam atuado”. “Por outro lado, algumas pessoas denunciadas referiram que ‘toda a gente sabia’ das situações de assédio”, pode ainda ler-se no relatório.
Os denunciantes explicam ainda que “as relações laborais eram precárias e instáveis e o ambiente extremamente competitivo” e que isso terá “levado à rivalidade entre colegas e à errada perceção de muitas pessoas de que foram vítimas de assédio moral”. “Há pessoas denunciadas que entendem que o CES foi alvo de um “golpe de estado” e que há em curso uma guerra contra o CES justificando assim as denúncias vindas a público”, refere ainda a comissão independente.
Denúncias têm um ano
À comissão chegaram denúncias de dez mulheres de várias nacionalidades sobre alegados casos de assédio sexual ou moral em atividades ou projetos dirigidos pelo investigador Boaventura de Sousa Santos ou membros da sua equipa, abrangendo um período que vai de 2000 a 2023, noticiava o “Público” em outubro do ano passado.
As acusações de má conduta sexual e assédio laboral surgiram há cerca de um ano, quando o livro foi publicado. As autoras descreviam condutas de assédio moral e sexual perpetradas numa instituição de ensino superior por um professor altamente conceituado, que designavam por “Star Professor” (tradução literal: professor estrela) e por um assistente. E, embora não refiram o nome da instituição, é claro que se trata do CES, já que este centro de investigação é o único ponto em comum que as três têm no currículo. Da mesma forma, é evidente que o principal acusado era o conhecido sociólogo Boaventura Sousa Santos, fundador e diretor do centro durante vários anos, nomeadamente à data em que ocorreram as alegadas práticas de assédio, e agora seu diretor emérito. O próprio admitiu que era de si que falavam.
O segundo envolvido nas acusações como o assistente era Bruno Sena Martins. Formado em antropologia era, de acordo com o site do CES, co-coordenador do programa de doutoramento "Direitos Humanos nas Sociedades Contemporâneas" e docente no programa de doutoramento "Pós-Colonialismo e Cidadania Global", tendo sido vice-presidente do conselho científico entre 2017 e 2019.
A regra dos investigadores jantarem anualmente com Boaventura Sousa Santos, em longos encontros que acabavam de madrugada e nos quais se bebia muito é um dos momentos relatados pelas autoras no artigo. “Nesta instituição, este tipo de desequilibradas relações de poder ocorria frequentemente sob a forma de eventos sociais como fazendo parte da cultura institucional, tais como jantares em restaurantes e casas particulares, onde se encorajavam relações pessoais mais íntimas entre investigadores de diferentes posições hierárquicas."
Neste contexto, também a ativista argentina mapuche Moira Ivana Millán voltou a acusar Boaventura - já o tinha feito anteriormente, mas sem repercussões. Foi, entretanto, também lançado um manifesto assinado por centenas de pessoas - “Todas sabemos” - e criado um coletivo de vítimas.
O relatório esta quarta-feira conhecido foi divulgado com atraso. Desde logo a constituição da comissão demorou quatro meses e o prazo estipulado era até ao primeiro dia de março. O coletivo de vítimas criticou ainda os moldes do anúncio dos resultados, tendo apelado a que os resultados fossem partilhados com as denunciantes antes destes serem tornados público, o que não aconteceu.
Boaventura e Sena Martins suspensos
Inicialmente, o sociólogo negou todas as acusações, tecendo críticas às três estudantes e investigadoras. “Só mentes perversas podem transformar o mais são convívio entre estudantes e professores em maquiavélicas maquinações de pastores de pobres rebanhos de estudantes”, disse. Também Sena Martins negou de imediato qualquer prática de assédio, garantindo que irá contestar todas as “afirmações falsas e insinuações grosseiras” nas instâncias competentes.
O CES, dias depois, tomou a decisão de suspender os dois suspeitos “de todos os cargos que ocupavam" na instituição, até ao apuramento das conclusões da comissão independente. "O CES respeita o direito de resposta individual, mas demarca-se de todas as posições assumidas publicamente por Boaventura de Sousa Santos e Bruno Sena Martins, nomeadamente no que respeita à intenção de avançar judicialmente contra as autoras do capítulo do livro", informaram em comunicado.
Em julho, num artigo de opinião publicado no Expresso, Boaventura de Sousa Santos haveria de pedir desculpa às pessoas que “possam ter sofrido ou sentido desconforto” por alguns comportamentos inapropriados que possa ter tido, mas que “antigamente” não eram vistos enquanto tal. Admita assim eventuais “comportamentos inapropriados”, mas rejeitava a prática dos “atos graves”.
Nota: primeiro parágrafo alterado às 21h24. Anteriormente lia-se: “A comissão independente constituída para investigar as suspeitas de assédio no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES) concluiu que houve “padrões de conduta de abuso de poder e assédio” por parte de Boaventura Sousa Santos e do seu assistente Bruno Sena Martins em relação a investigadoras e alunas - embora o nome de ambos nunca seja referido ao longo das 114 páginas do documento publicado esta quarta-feira.”