Sociedade

Fundação Oceano Azul e Casa Comum da Humanidade promovem debate internacional sobre o Sistema Terrestre como Património da Humanidade

A iniciativa é também um tributo a Will Steffen, o conhecido cientista norte-americano e investigador da Universidade Nacional da Austrália (Camberra) que foi pioneiro nas ciências do Sistema Terrestre. E acontece precisamente um ano após a sua morte
A iniciativa é também um tributo a Will Steffen, o conhecido cientista norte-americano e investigador da Universidade Nacional da Austrália (Camberra) que foi pioneiro nas ciências do Sistema Terrestre. E acontece precisamente um ano após a sua morte
RUI DUARTE SILVA

Ainda não existe um regime jurídico global que regule o uso do sistema climático e crie um processo que assegure de forma permanente a manutenção e restauração da sua estabilidade. E a resposta do Acordo de Paris a este problema é claramente insuficiente

O debate sobre o tema “O Sistema Terrestre como Património Comum da Humanidade – da Ciência ao Direito, às Políticas e à Governança”, vai realizar-se a 29 de janeiro em Lisboa numa conferência internacional no auditório da Fundação Oceano Azul (Oceanário). A iniciativa é também um tributo a Will Steffen (1947-2023), cientista norte-americano e investigador da Universidade Nacional da Austrália (Camberra) que foi pioneiro nas ciências do Sistema Terrestre, um dos fundadores da Casa Comum da Humanidade (CCH) e presidente do seu conselho científico. E acontece precisamente um ano após a sua morte.

A CCH, com o apoio da Fundação Oceano Azul (FOA), assinala esta data num evento que pretende iniciar um debate público sobre objetivo, já presente na Lei de Bases do Clima portuguesa, de reconhecimento do clima estável e do Sistema Terrestre como Património Comum da Humanidade no direito internacional, refletindo sobre as suas implicações positivas nas políticas públicas nacionais e globais. O Sistema Terrestre é o conjunto de processos físicos, químicos e biológicos que interagem no Planeta, e que permitem a existência de vida.

Vão participar na conferência, entre outros, o conhecido cientista sueco Johan Rockstrom, diretor do Instituto Potsdam para a Investigação do Impacto Climático e professor da Universidade de Potsdam (Alemanha); a diplomata equatoriana Maria Fernanda Espinosa, ex-presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas e diretora executiva da organização global GWL Voices for Change and Inclusion; o economista norte-americano Jeffrey Sachs, diretor do Centro para o Desenvolvimento Sustentável do Instituto da Terra (Universidade de Columbia, Nova Iorque); o jurista Paulo Magalhães, diretor executivo da CCH e investigador principal do Centro de Investigação Interdisciplinar em Justiça (CIJ) da Universidade do Porto; Tiago Pitta e Cunha, diretor executivo da Fundação Oceano Azul (gestora do Oceanário de Lisboa); Tim Lenton, diretor do Instituto dos Sistemas Globais e professor de Alterações Climáticas e Ciência do Sistema Terrestre na Universidade de Exeter (Reino Unido); e o filósofo Viriato Soromenho-Marques, professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. O ministro dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho, e o secretário executivo da CPLP, Zacarias da Costa, falarão na sessão de encerramento da conferência.

O objetivo dos organizadores deste evento é promover a partilha de conhecimento, experiências e visões sobre novos caminhos no Direito e nas políticas públicas, para uma efetiva preservação do Sistema Terrestre. E destacar a urgência de medidas verdadeiramente eficazes e inovadoras na governação ambiental e na preservação, numa perspetiva multigeracional, deste Património Comum da Humanidade.

Abordagem sistémica da Natureza e dos oceanos

Tiago Pitta e Cunha explica ao Expresso que “a Fundação Oceano Azul tem uma abordagem sistémica da Natureza e dos oceanos, ou seja, não desenvolve programas para recuperar apenas uma espécie marinha, mas apoia a criação de áreas marítimas protegidas, que dizem respeito ao sistema oceânico no seu todo, e preocupa-se com a governação dos oceanos”. Esta visão sistémica, “que é também a visão da Casa Comum da Humanidade, ainda não é dominante, porque exige um grau de consciencialização mais elevado e a associação entre áreas do conhecimento que pertencem a disciplinas diferentes”.

Assim, o Planeta “ainda não é pensado como um sistema e o oceano é visto apenas como um espaço territorial pelos políticos e pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar”. O ser humano “inventou cinco oceanos, cinco espaços territoriais, quando na realidade só existe um oceano na Terra. E quanto mais ouvimos os cientistas mais concluímos que o Planeta foi conseguido através de um sistema bioquímico que a maior parte das pessoas não vê”.

Portanto, “para além de um espaço orgânico gerido pelo Direito há um sistema oceânico que não é reconhecido pelos políticos”. Os cientistas estão a compreender “que a atividade humana perturbou todo um sistema bioquímico de uma forma que vai muito para além do problema das emissões de CO2 e, por isso, o Acordo de Paris de 2015 atualmente em vigor não é a resposta à complexidade do que se passa no Planeta”. Com efeito, “ainda não chegámos ao limite crítico dos 1,5 graus de aumento da temperatura global da Terra, mas já estamos a sentir fortemente o impacto no clima”.

O oceano “absorve mais de 90% do excesso de calor provocado pelas alterações climáticas, o que gera desequilíbrios e fenómenos extremos não apenas no mar, mas também a nível global, como acontece com as tempestades”. No verão de 2023, por exemplo, a temperatura do Mediterrâneo atingiu o recorde de 28,4 graus “e teve de se dissipar, o que gerou posteriormente tempestades na região, incluindo em zonas improváveis como a Líbia, onde provocou 20 mil mortos”. A temperatura do mar “não era falada há cinco anos, mas hoje sabemos que devido às alterações climáticas estamos a adulterar a enorme biodiversidade dos oceanos. E só os corais representam 30% da biodiversidade da Terra”.

A ideia do reconhecimento do clima e do Sistema Terrestre como Património Comum da Humanidade nasceu a partir do oceano e é ainda hoje um projeto inacabado. O oceano é, assim, um catalisador indispensável tanto para uma nova visão da dinâmica planetária como para uma nova abordagem jurídica do ambiente planetário como um todo, onde se destaca a interconexão entre o clima e os ecossistemas marinhos.

Revolução científica na compreensão do funcionamento do Planeta

“Esta conferência pretende atingir vários objetivos, todos eles entrelaçados, mas o fio condutor será uma homenagem ao grande cientista Will Steffen, que colaborou intensamente com a Casa Comum da Humanidade na última década da sua notável vida”, afirma Viriato Soromenho-Marques. O professor catedrático da Universidade de Lisboa vai falar no evento sobre “A revolução científica das ciências do Sistema Terrestre” e recorda que Will Steffen “foi o líder global de alianças científicas que mobilizaram centenas de investigadores de mais de 100 países, a partir da década de 1980”.

Por isso, “é considerado, justamente, como o pai das Ciências do Sistema Terrestre que, desde 1980 até hoje permitiram operar uma verdadeira revolução científica no modo de estudar e compreender a natureza e o funcionamento do nosso Planeta”. O investigador norte-americano percebeu que o novo paradigma científico proporcionado pelas ciências do Sistema Terrestre “destaca a centralidade da dimensão funcional e dinâmica dos grandes fluxos planetários, como os ciclos do carbono ou do azoto, ou as interações do mar e da atmosfera, fluxos esses que não coincidem com a visão estática e territorial como a Terra é encarada pela Política e pelo Direito atuais”. Sem passarmos essa revolução científica para o Direito e a Política “estamos condenados à impotência perante a destruição que a nossa espécie coletivamente causa no Planeta”.

Viriato Soromenho-Marques recorda que Will Steffen percebeu que a sua investigação científica “estava em plena harmonia” com os objetivos da Casa Comum da Humanidade (CCH) e com a proposta do jurista Paulo Magalhães de uma inovação no Direito Internacional baseada na hipótese do Condomínio da Terra, isto é, “a ideia de que, tal como num condomínio, também no Planeta, os Estados têm de reconhecer que a sua soberania sobre o território fixo é inseparável da responsabilidade partilhada com os outros Estados pela defesa e salvaguarda do património comum, irredutível às fronteiras de cada um deles, mas que todos podem afetar positiva ou negativamente”, ou seja, o clima, a atmosfera, a hidrosfera, a biodiversidade, etc.

O trabalho de definir cientificamente o caráter do aspeto funcional comum do planeta - como medi-lo, delimitá-lo e representá-lo do ponto de vista jurídico - juntou Will Steffen à inovação jurídica proposta pela CCH. Viriato Soromenho-Marques acrescenta que a conferência de 29 de janeiro pretende também explicar “como na Lei do Clima portuguesa de 2021 esta visão está claramente expressa, sendo Portugal o primeiro país do mundo que considera o clima estável como Património Comum da Humanidade, ao contrário do conceito juridicamente vazio que ainda está em vigor do clima como mera Preocupação Comum da Humanidade”, adotado pelas Nações Unidas.

Não existe um regime jurídico que regule o uso do sistema climático

Na verdade, hoje não existe um regime jurídico que regule o uso do sistema climático e que crie um processo com vista a assegurar de forma permanente a sua manutenção e restauração. O Acordo de Paris centra-se, exclusivamente, na tentativa de redução ou neutralização das emissões de CO2 correntes – os fluxos - sem possuir um quadro legal que enquadre e permita o desenvolvimento da atividade de redução do CO2 já acumulado em excesso no sistema climático desde a Revolução Industrial – o stock.

Quando a concentração de CO2 na atmosfera já ultrapassou largamente os limites de segurança, uma abordagem centrada apenas na redução e neutralização de emissões (neutralidade de fluxos) é claramente insuficiente. É necessário intervir também no stock já em excesso – isto é, limpar a atmosfera. Mas atualmente não existem nem um enquadramento jurídico nem mecanismos económicos destinados a pagar emissões negativas.

Reconhecer juridicamente o Sistema Terrestre como Património Comum da Humanidade implica considerar o sistema climático, onde todos os “inputs”, negativos ou positivos, de todos os Estados se tornam visíveis e contabilizáveis neste novo objeto jurídico. Deste reconhecimento podem emergir direitos resultantes dos benefícios realizados no património comum - as remoções de CO2 - bem como deveres resultantes da apropriação de um bem que pertence a todos – as emissões de CO2. O reconhecimento dos benefícios para toda Humanidade da redução do passivo histórico de CO2 acumulado desde a Revolução Industrial, provocaria efeitos em cascata positivos nos processos negociais das cimeiras do clima da ONU (COP) na economia, nas relações entre países desenvolvidos e em desenvolvimento ou na justiça climática entre gerações.

O significado inovador da Lei do Clima portuguesa, que aborda esta dimensão, foi já debatido na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), nomeadamente na IX Reunião dos Ministros do Ambiente da CPLP realizada em abril de 2023 no Lubango (Angola). Uma vez que a COP30 vai ter lugar em 2025 num país de língua portuguesa, o Brasil (em Belém do Pará), depois de reuniões realizadas com o governo do Brasil e com a CPLP, a Casa Comum da Humanidade está a preparar a iniciativa PARIS+10, para que o tema do clima estável como Património Comum da Humanidade entre na agenda da COP30, ou seja, na agenda global.

Uma vez que este projeto nasceu em Portugal, caso se venha a tornar um assunto global o país poderá estar no epicentro deste processo, embora este objetivo consagrado na Lei do Clima portuguesa desde 2021 continue sem ser assumido pela política externa do Governo.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate