Rabo de Peixe não gosta de “Rabo de Peixe”: “Eu disse ao meu homem que tive vergonha de ver aquilo ao pé dele”
Hugo Moreira
Reportagem no lugar que dá nome à produção: moradores da vila indignados com a imagem da sua terra que dá nome à série da Netflix, realizada pelo açoriano Augusto Fraga
“Houve muita gente que não dormiu à espera de ver essa série porque estreou cá, às seis da manhã, se não estou em erro.” Adelina Sousa, 51 anos, até não foi uma dessas pessoas, porque assistiu à antestreia de “Rabo de Peixe” no teatro Ribeira-grandense, dias antes da série nascer para o resto do mundo. Com ela, vieram recordese um mar de opiniões sobre a direção do açoriano Augusto Fraga, a segunda produção nacional com o carimbo Netflix.
“Eu não gosto. Esta é a minha terra, tem o seu lado bom e o lado mau, mas não é como pintam. Dá-me uma impressão ver aquela série e muitas partes nem são em Rabo de Peixe”, diz Adelina, falando com as mãos e com os olhos esverdeados e expressivos. Nasceu, cresceu, vive e trabalha com crianças em Rabo de Peixe, na ilha de São Miguel, a maior vila piscatória dos Açores e está convicta que a série que “vai perpetuar o preconceito” do lugar.
O centro de atividades de ocupação de tempos livres onde passa os dias fica a escassos metros do velho campo de futebol onde está escrito, em letras pretas e gastas, “Eu sou de Rabo de Peixe, mas não tenhas medo”. É a mais icónica frase de uma música do rapper nascido na vila, Sandro G., representado na série que soma expressões tipicamente micaelenses, ícones e hábitos insulares. Nesse mesmo campo de futebol, passam-se cenas da série que foi gravada em diferentes freguesias da ilha de São Miguel.
Entrar no “bairro do caranguejo”, como é conhecida a zona piscatória de Rabo de Peixe, é entrar num labirinto de ruas apertadas e divididas pelas coloridas fachadas das suas pequenas casas, teto de famílias numerosas. Ou são revestidas a azulejos, ou com tintas de tons vibrantes. Quase todas, sobre ou ao lado da porta de entrada, têm a imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres ou de Nossa Senhora de Fátima. Outros santos, com exceção do Espírito Santo, a que se agarram as gentes de Rabo de Peixe são raros.
No canto de uma dessas ruas estreitas está o “América”, o videoclube da série onde os atores José Condessa, Helena Caldeira e André Leitão contracenam. Na vida real, foi um café que agora está fechado, tem a pintura desvanecida e esconde-se atrás de grades verdes. Do letreiro luminoso que o identifica na série, não resta nenhuma das letras da palavra “América”, aquela que já fez sonhar muitos habitantes das nove ilhas.
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Elisabete Andrade abre as persianas verdes da janela da casa da sogra. Espreita o que se passa na rua. “Não gostei de ‘Rabo de Peixe’, estou a ser sincera. Eles falaram mal, não foi bem, de Rabo de Peixe. Fomos difamados pela boca deles”, conta ao Expresso, entre os pingos que a tempestade Óscar trazia à vila. Elisabete explicou que fecharam aquela rua ao trânsito, para as filmagens, inclusivamente em dias de chuva como este. E confessa que aquilo que mais a incomoda são os palavrões. “Eu disse ao meu homem que tive vergonha de ver aquilo ao pé dele, estou sendo sincera, e disse-lhe ‘apaga isso porque está aqui o meu filho pequenino’”.
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Série atrai turismo
Rabo de Peixe estreou há duas semanas e já é a sétima produção em língua não inglesa mais vista da plataforma de vídeo mais famosa do mundo. Mesmo com muitas cenas e histórias gravadas fora dela, o nome Rabo de Peixe já começa a atrair turistas e curiosos. “Muitas pessoas têm vindo para Rabo de Peixe. Ontem esteve uma camioneta lá para baixo com aquilo tudo doido, só turistas”, conta Elisabete.
Subimos a rua do América e encontrámos um no café mais benfiquista da vila, o São Miguel. A fachada é encarnada e o interior também; o simbolismo das águias está em quase tudo. Lá dentro, vários clientes jogam dominó. Entra um novo, desconhecido de todos. “É a primeira vez que venho a Rabo de Peixe porque ouvi falar de uma novela e devido a essa novela vim conhecer”, confessa Fernando Silva, natural de Gaia, norte do país. “É uma zona agradável, turística, bem bonita. Estou contente, fiz um amigo porque é benfiquista, se fosse portista não lhe pagava o café”, conta a rir.
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Atrapalhado ao balcão, António Cabral lá tira dois cafés. Ambos transbordam, e entre sorrisos, justifica-se dizendo que a “máquina é nova” e “chegou hoje”. Ao Expresso, conta que têm aparecido mais “curiosos”, sim, mas não sabe se será efeito direto da Netflix. “Perguntam-me como foi, se foi verdade ou não, em que sítio foi, alguns fazem essas perguntas”, explica o proprietário do café no centro da freguesia.
Quando o veleiro com cerca de meia tonelada de cocaína que naufragou ao largo da ilha de São Miguel, em 2001, António estava emigrado nas Bermudas. “Na altura, o meu sobrinho queria pintar as linhas do campo de futebol com a coca. Havia um bocadinho de terra onde a gente jogava futebol e ele pegou num copo daquele pó e fez a pequena área, pensavam que era cal. Houve muita gente aí que ficou rica”, conta António. Quando perguntámos se a série era boa para a comunidade, respondeu com mais dois clientes que estavam ao balcão: “Não, há muita gente aqui revoltada com isso”. A opinião é partilhada por quase todos.
Ao descer o “bairro do caranguejo”, na linha que separa o cais do mar, ao maior porto dos Açores, acaba de chegar um barco depois de 14 horas de pesca. Seis pescadores separam, em caixas azuis, aquilo que conseguiram capturar: imperadores, vejas, peixe vermelho e mais uma ou outra espécie que calhou na linha. É difícil fazer com que falem publicamente sobre a série, mas todos falam ou já falaram dela entre si e com os pares. “É perigoso se eu começar a falar. Moro aqui há 50 anos e aquele filme é todo mentira. Isto agora só se fala de Rabo de Peixe e a gente é que paga tudo. Se fosse tudo igual a mim não deixava fazer um filme aqui” garante Nelson Cabral.
Enquanto organiza o pescado, e sempre em movimento, Luís Benevides conta que há 22 anos o tal veleiro carregado de cocaína encalhou perto da sua casa. “Do meu quintal vi o barco. A polícia foi ao meu quintal, eu é que não fui lá buscar nada. Agora só se fala mal de Rabo de Peixe, droga, droga, droga, e Rabo de Peixe é mais do que isso.”
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Adelina, auxiliar de educação, concorda que Rabo de Peixe é mais do que isso, mas diz ser preciso trabalhar com as famílias para que a mudança aconteça. “Eu gosto muito dessa gente, mas mudar as mentes é difícil e demora muito. Tenho crianças de oito, nove anos que não sabem ler, não têm incentivo. Estão na escola só para receber o rendimento.”
Jaime Vieira, deputado regional social-democrata e presidente da junta de freguesia conhece bem os problemas da sua comunidade. Ao Expresso, fala com cautela sobre a série. “Cada cabeça tem a sua sentença e cada pessoa tem a sua forma de pensar”, começa por dizer. O autarca ressalva que se trata de “uma ficção, uma história contada por três amigos que não corresponde exatamente àquilo que aconteceu”. “Numa fase inicial reunimo-nos com os produtores para que tivessem algum cuidado, para que o estigma acerca desta terra não ficasse mais evidente. Quando ela foi criada pensávamos que era mais uma série, mas nunca imaginamos que passado este tempo atingisse o êxito que está a ter”, confessa o autarca.
O presidente da junta diz que, o que pensa sobre o que viu, guarda para si. Mas já que Rabo de Peixe anda pelo mundo, que isso sirva para “projetar o nome da vila”, onde uns “acreditam ser pela parte negativa, outros pela parte positiva”. Escreveu Oscar Wilde que “só existe uma coisa pior do que falarem da gente. É não falarem”.