Opinião

Rabo de Peixe não é McDonald’s, é sardinha assada

Os autores da série cometeram um erro gravíssimo. Numa altura em que se exige recorrentemente às séries que “problematizem”, “desconstruam” e “reflitam criticamente”, Rabo de Peixe optou pelo ignóbil propósito de entreter. Esta decisão teve, obviamente, graves e merecidas consequências. Houve quem optasse por perder um fim-de-semana para ver a série e, com a solicitude com que um cão pisteiro procura cocaína, procurar defeitos

Tenho amigos que são snobs do peixe. Sempre que alguém relata determinado repasto piscícola desfrutado no passado recente, não perdem tempo em averiguar se “era do mar ou de viveiro”. Notoriamente, é-lhes indiferente se estava bom, se a refeição foi prazerosa ou se foi uma boa opção em termos de qualidade / preço. O que interessa é a proveniência, o pedigree, o brasão de família do robalo. Como peixe é cultura, só os selvagens comem peixe que não é selvagem.

Atenção, eu não julgo esta posição. É clara a diferença entre o peixe de mar e o peixe de aquacultura. Só que às vezes é terça-feira, não apetece carne e gastar 60 euros num pregado resultaria na necessidade de uma auditoria externa às finanças familiares. Uma dourada de 12 euros não inclui o preço da sofisticação, mas comer peixe é um privilégio. E não só de ordem económica: os turistas chegam cá e passam-se com o nosso peixe de viveiro. Aparentemente, têm também gostado da série Rabo de Peixe. A reação de determinada elite, em ambos os casos, é a mesma: “eles sabem lá o que é bom, comem o que lhes aparece à frente”. Era óbvio que no país dos snobs de peixe, tinham de aparecer os snobs de Rabo de Peixe.

Os autores da série cometeram um erro gravíssimo. Numa altura em que se exige recorrentemente às séries que “problematizem”, “desconstruam” e “reflitam criticamente”, Rabo de Peixe optou pelo ignóbil propósito de entreter. Esta decisão teve, obviamente, graves e merecidas consequências. Houve quem optasse por perder um fim-de-semana para ver a série e, com a solicitude com que um cão pisteiro procura cocaína, procurar defeitos.

Se a série fosse um comovente retrato da miséria social, estaria tudo impecável. Cinco estrelas no suplemento cultural, seguidas de uma palavrosa exegese. Se adormecesse o espectador ao segundo episódio, melhor ainda. Como tem ritmo, ação e cumpre o objectivo de fidelizar o público, não serve para agradar a quem come todos os dias garoupa fresquíssima do mercado de Alvalade.

Um dos defeitos encontrados pelos laboratórios do CSI Alta Cultura é que a série não se debruça suficientemente sobre os problemas sociais da região. Se calhar algum press release sugeriu que Rabo de Peixe seria, não um produto comercial de ficção, mas um relatório da Comissão Europeia sobre coesão territorial. Tenho a certeza de que os produtores consideraram incluir na série uma apresentação de diapositivos com gráficos sobre o desemprego jovem no município da Ribeira Grande, mas - infelizmente para quem acha que um conteúdo da Netflix tem de ser um trabalho de sociologia - optaram por tiroteios, perseguições policiais e uma cena de cunnilingus à beira mar.

Depois, há quem note a ausência de sotaque. É uma crítica bastante válida, mas já não se via tanta indignação com uma "não-pronúncia" desde que Ivo Rosa decidiu que José Sócrates escaparia ao julgamento por crimes de corrupção. Há também quem não tenha apreciado os palavrões. Por outras palavras, pela boca morre o Rabo de Peixe. Das duas uma, ou queremos uma série que se aproxime da realidade; ou queremos uma série sem obscenidade. Seria talvez mais verosímil que a reacção de um habitante da uma vila empobrecida nos Açores quando se apercebe que deu à costa meia tonelada de cocaína fosse "caspite!", "apre!" ou "ora bolas".

A série é eficaz e preenche muito bem um domingo de ressaca. Apesar de o espectador não ter em sua posse centenas de quilos de estupefacientes, consegue relacionar-se com as personagens. Nem que seja porque nós próprios também enveredámos pela criminalidade, ao continuar a partilhar passwords da Netflix.

Não faz grande sentido que nos excitemos de cada vez que há uma menção a Portugal num filme estrangeiro e depois queixemo-nos de que uma série passada e rodada em Portugal, com realizador e atores portugueses, não é portuguesa o suficiente. É possível que, quando se diz que Rabo de Peixe devia ser mais portuguesa, se queira dizer que não devia ser tão popular. O problema é que Rabo de Peixe não é chato. O problema é que Rabo de Peixe não é uma maçada de peixe.

Daniel Oliveira escreveu no Expresso que Rabo de Peixe era McDonald's. Discordo. É fast food, mas à portuguesa. A sua chegada é celebrada e torna-se tema de conversa; é popular e de consumo rápido; não sendo altamente sofisticada, é competente numa noite de Verão, pós-praia, sem grande tempo para refletir em algo mais complexo. Claramente, Rabo de Peixe é sardinha assada.

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