388 mil lisboetas dormem com o ruído de aviões, a fatura no ambiente e na saúde pode chegar a €2 mil milhões. Tem a palavra o Parlamento
picture alliance
Projetos de lei para restringir ou impedir voos noturnos sobre a capital não serão votados esta sexta-feira e passam para a discussão na especialidade. Enquanto isso, somam-se queixas dos moradores e um estudo estima que dois terços sejam afetadas pela poluição sonora causada pelas aterragens e descolagens do aeroporto da Portela
A Organização Mundial da Saúde aconselha a que o ruído não ultrapasse os 45 décibeis (dB) durante o dia e os 40 dB à noite, já que a exposição a níveis de poluição sonora excessiva pode causar perturbações no sono, stress, hipertensão arterial, mudanças de estado de humor e diminuir a capacidade de concentração e o desempenho no trabalho ou na escola.
Porém, “mais de 388 mil pessoas estão expostas a níveis de ruído superiores a 45 decibéis [Ln 45 (dB)] durante a noite”, causado pelas descolagens e aterragens de aviões no aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, indica ao Expresso Acácio Pires, da Zero.
Estes números constam de um estudo realizado no âmbito do grupo de trabalho parlamentar criado para avaliar a problemática dos voos noturnos e que se espera ver em breve apresentado. Os números atualizam com dados de 2019 as estimativas da Agência Portuguesa do Ambiente, que indicavam 57 mil pessoas afetadas pelo ruído noturno dos aviões em Lisboa e Loures, em 2016.
“O estudo aponta também para que os custos dos impactos totais na Saúde e no Ambiente ascendam a €266,9 milhões por ano e a €2,2 mil milhões em 10 anos (entre 2019 e 2029), dos quais até 506 milhões são associados a emissões de Co2 equivalente”, adianta o ativista ambiental. E lembra que “€2,5 mil milhões de euros era o custo estimado para a construção de um aeroporto com duas pistas em Alcochete”. Acácio Pires ressalva que nestas contas não entram outras variáveis como a perda de produtividade no trabalho ou a desvalorização do imobiliário.
Partidos querem fim dos voos noturnos
Para tentar acabar com o flagelo da poluição sonora causada pelos aviões na capital portuguesa, quatro partidos apresentaram quatro projetos de lei para acabar ou restringir os voos noturnos em Lisboa. A votação estava prevista para esta sexta-feira em Plenário, mas os deputados acabaram por acordar passar a discussão para a comissão da especialidade.
O BE quer “interditar a ocorrência de voos civis noturnos, salvo aterragens de emergência ou outros motivos atendíveis; o PAN quer “restringir a realização de voos noturnos, salvo por motivo de força maior, procedendo à alteração do Regulamento Geral do Ruído e do Decreto-Lei”; o Livre defende “a salvaguarda do descanso e bem-estar: contra a realização de voos noturnos em Lisboa”; e o PCP está “pelo fim dos voos noturnos, pelo direito ao descanso e bem-estar”.
Para Acácio Pires, a decisão de passar à discussão na especialidade “é acertada” e a Zero espera ser ouvida para alterações e melhorias das propostas, ambicionando que chegue o dia sem voos noturnos em Lisboa.
Um avião a cada 15 minutos
Legalmente são autorizados 91 voos semanais entre as 00h00 e as 6h00, no aeroporto de Lisboa. E nas últimas seis semanas (entre 18 de outubro e 28 de novembro) – devido ao “regime excecional” de operação de aeronaves autorizado pelo Governo para proceder à transição para o novo sistema de gestão de tráfego aéreo – foram autorizadas 439 aterragens e descolagens noturnas.
Os números constam nos registos da NAV e, segundo Acácio Pires, “indicam que dos 196 voos realizados entre as 2h e as 5h da manhã, durante 40 dias, 18 foram considerados irregulares, e os restantes 178 foram realizados ao abrigo da portaria 303-A/2004, que prevê 91 voos por semana entre as 00 e as 06”. Em 40 dias, somaram-se 973 movimentos aeronáuticos neste período, o que dá uma aterragem ou descolagem a cada 14 minutos.
Foram noites turbulentas para quem vive sobretudo no eixo entre Campo de Ourique, em Lisboa, e o bairro das Maroitas, em Loures. E o número de queixas que chegaram à Zero ultrapassa as 400.
“A maioria das reclamações que nos têm chegado são de cidadãos estrangeiros, que têm casa em Campo de Ourique ou Campolide, e que se dizem surpreendidos com a situação e com o facto de os portugueses tolerarem este fatalismo há tanto tempo”, conta Acácio Pires. Os queixosos também lamentam não haver forma direta de fazer chegar as suas queixas às entidades responsáveis, como a Ana aeroportos e a APA.
Com a discussão parlamentar que se segue, também vão ser debatidas as medidas de mitigação do ruído prometidas pela ANA e que continuam por concretizar. O Plano de Ação do Ruído 2018-2023 para o aeroporto Humberto Delgado tem apenas mais um ano de vigência, mas as intervenções de insonorização nos edifícios identificados estão por executar. E continua sem se saber quando estará a funcionar a plataforma online para os proprietários se candidatarem a financiamento para isolarem as suas casas do ruído.
Entretanto, desde há cerca de um mês, a ANA tem a funcionar a plataforma online “web trak”, com informação em tempo real sobre voos diários e noturnos, sobretudo os que ocorrem no período das 22h às 6h da manhã, e a classificação sonora das aeronaves e motivos associados aos “casos de força maior” para aterragens no período restrito.
"Aeroporto fora"
Entretanto, há duas semanas, foi criada uma plataforma cívica “Aeroporto fora, Lisboa melhora", que exige ao Governo “medidas imediatas como o fim dos voos noturnos, o cumprimento da Lei Geral do Ruído, bem como a travagem da expansão da atividade aeroportuária em curso”.
Em comunicado, a nova organização relata que “mais de 200 mil cidadãos de Lisboa não podem dormir, caminhar na rua, trabalhar, aprender, descansar, brincar ou conversar sem o incómodo ininterrupto dos aviões a passar — são cerca de 600 por dia, um a cada dois minutos e meio, às vezes mais”. Durante a noite, muitos só conseguem dormir com tampões nos ouvidos.
*correção do valor de custos no tempo e número de voos. atualização às 17h53
Assine e junte-se ao novo fórum de comentários
Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes