Sociedade

Sociedade civil dos países de língua portuguesa vai debater reconhecimento do clima como Património da Humanidade

Conferência internacional em Lisboa reúne pela primeira vez académicos e representantes de ONG, de instituições e de empresas

Discutir o tema “Clima Património da Humanidade” é o objetivo da conferência internacional que juntará pela primeira vez em Lisboa, a 28 e 29 de outubro, académicos e representantes de ONG, de instituições e de empresas de todos os países de língua portuguesa.

A iniciativa, que terá lugar no auditório da sede da Vodafone Portugal, no Parque das Nações, é organizada pelo Grupo de Missão para o Reconhecimento do Clima como Património Comum da Humanidade (representado pela Casa Comum da Humanidade), Universidade do Porto, Centro de Investigação Jurídico-Económica da mesma universidade (CIJE), organização científica europeia EurOcean e Business as Nature – Associação para a Produção e Consumo Sustentável e a Economia Circular (BasN). E conta com o apoio institucional do Ministério do Ambiente e da Ação Climática, da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (CNADS), bem como o Alto Patrocínio da Presidência da República. O ministro do Ambiente, Duarte Cordeiro, fará uma intervenção no evento.

O embaixador Zacarias da Costa, secretário executivo da CPLP, afirma ao Expresso que “a conferência é uma iniciativa de grande relevância, na medida em que procura criar um espaço de diálogo e de reflexão sobre um novo estatuto jurídico para o clima”. Recorde-se que Portugal foi o primeiro país do mundo a reconhecer o clima estável como Património Comum da Humanidade na nova Lei de Bases do Clima, que entrou em vigor a 1 de fevereiro.

O principal objetivo da conferência é, segundo os seus organizadores, iniciar um diálogo entre os países da CPLP sobre este reconhecimento, de modo a posicionar estes países “no debate global sobre a necessidade de uma mudança de paradigma assente no desenvolvimento de modelos económicos mais favoráveis à garantia de estabilidade do clima a nível planetário, por via da valorização económica dos esforços e das políticas públicas de proteção, conservação e restauro do Sistema Terrestre”.

Tornar socialmente visível o valor do clima estável

O presidente executivo da Casa Comum da Humanidade (CCH) e investigador do CIJE, Paulo Magalhães, sublinha que “a atual incapacidade de retratar adequadamente os factos da dinâmica funcional do Sistema Terrestre, tem estado na origem da ausência de qualquer mecanismo capaz de tornar socialmente visível o valor vital da provisão do bem comum que é o clima estável, isto é, a realização de emissões negativas, os serviços de ecossistema que limpam e mantêm o regular funcionamento do Sistema Terrestre”. No entanto, “a civilização humana emergiu precisamente porque surgiu um clima estável”.

Como este bem comum não é reconhecido no direito internacional como Património Comum da Humanidade, “é impossível internalizar benefícios que os ecossistemas realizam no clima, porque desaparecem num vazio jurídico global”, acrescenta Paulo Magalhães. Por isso, “hoje não existe um sistema de incentivos à realização de emissões negativas, nem é possível construir uma economia que cuide e restaure ativamente o clima”. Este facto, “tem sido um ativador primário na atual dinâmica económica de produção de emissões, e no insucesso no combate às alterações climáticas”. Aliás, o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas da ONU (IPCC) “assumiu já nos últimos relatórios que só através de enormes remoções de CO2 da atmosfera poderemos atingir os objetivos do Acordo de Paris, sendo que o próprio acordo não enquadra esta possibilidade no atual quadro legal ineficaz da Preocupação Comum da Humanidade”.

No modelo atual da “Preocupação”, realizar benefícios ao clima é uma externalidade económica porque é um benefício realizado num bem que não existe de um ponto vista jurídico. “A única forma de obter créditos financeiros é reduzindo ou neutralizando emissões, ou seja, é mitigar o problema”. Desta forma “vendem-se créditos de carbono que não foram usados, mas que vão ser usados por outros, mas ninguém é compensado em termos económicos por retirar o CO2 em excesso da atmosfera no interesse da toda Humanidade, as chamadas emissões negativas”, argumenta o presidente da CCH.

Paulo Magalhães destaca, a propósito da conferência internacional de 28 e 29 de outubro em Lisboa, a importância dos países de língua portuguesa neste processo, “porque a nossa língua está presente em quatro continentes e junta sete países do chamado Sul Global - Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste - com um país do Norte Global, que é Portugal”. E o Sul Global “é decisivo para se construir uma nova ordem mundial, em que os recursos mais valiosos são os ecossistemas, que podem limpar o clima e aquilo que o mantém estável, porque não mantemos o clima estável apenas reduzindo as emissões de CO2, precisamos também dos ecossistemas e dos seus serviços”. Esta visão “implica uma nova estrutura política internacional, uma governança global e em primeiro lugar a definição do bem comum clima estável, que tem de ser gerido, o que não passa apenas pelo Acordo de Paris, que pretende somente fazer menos mal ao planeta”.

Um novo olhar sobre a gestão ambiental e climática

Izabella Teixeira, ex-ministra do Meio Ambiente do Brasil (governos de Lula da Silva e de Dilma Rousseff) que será uma das oradoras da conferência internacional em Lisboa, defende “um novo olhar sobre a gestão ambiental e climática, uma nova abordagem estratégica internacional que tenha em conta que uma boa parte dos recursos naturais está nos países do Sul Global”. A atual co-presidente do Painel de Recursos Naturais do Programa da ONU para o Ambiente (UNEP) diz que esta abordagem “deve ser feita no contexto da tripla crise ambiental (alterações climáticas, perda da biodiversidade e aumento da poluição) e exige uma governança global que não dependa apenas das soberanias nacionais, mas também do fortalecimento da ONU e de um novo sistema multilateral que mude o uso dos recursos naturais” do planeta.

“A nossa proposta do clima como Património Comum - que contém no seu interior a ideia maior de uma habitação e cuidado em comum do Sistema Terrestre no seu conjunto - não poderia ser mais dramaticamente oportuna”, explica Viriato Soromenho-Marques, professor catedrático de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e presidente da assembleia-geral da CCH. “Estamos mergulhados numa perigosíssima decomposição do sistema internacional nascido do fim da Guerra Fria há mais de 30 anos, onde se combinavam elementos de unipolarismo (dos EUA) com características de multilateralismo (das Nações Unidas, com a sua multidão de agências). Infelizmente, nesta transição para um novo sistema internacional, estamos a assistir a uma perigosa descida ao abismo, com tensões bélicas crescentes na Europa e na Ásia envolvendo o triângulo das grandes potências EUA, China e Rússia”.

A proposta de reconhecer o clima como Património Comum da Humanidade “visa contribuir para uma renovação do sistema internacional, que permita articular a realidade objetiva de grandes potências e da competição entre os diferentes interesses dos Estados com a necessidade ainda mais objetiva e premente de uma agenda reforçada de multilateralismo, para combater a ameaça existencial do colapso ambiental e climático que lança a sua sombra sobre a Humanidade inteira”.

Viriato Soromenho-Marques assinala que o objetivo “de tornar o multilateralismo – isto é, a capacidade de trabalhar em conjunto para tarefas comuns numa base de regras consentida e respeito mútuo - na força dominante do sistema internacional, transformou-se hoje, quando a possibilidade de uma guerra nuclear global é maior do que nunca, num apelo à responsabilidade das grandes potências”. Assim, “estabilizar o clima, proteger a casa comum planetária, tem na recusa da escalada bélica a sua condição necessária e suficiente”.

Criar um sistema multilateral inclusivo

Reconhecer o clima como Património da Humanidade no direito internacional “é um projeto absolutamente indispensável, perante os riscos gravíssimos das alterações climáticas e da perda de biodiversidade, e o ambiente devia ser uma preocupação central do Conselho de Segurança da ONU”, destaca Álvaro Vasconcelos, fundador do Fórum Demos, uma organização em rede criada para debater os problemas da democracia. Para esse reconhecimento se concretizar, “é preciso uma conjugação do ativismo da sociedade civil, da sua força, com o poder político a nível mundial, através de um pacto global verde e de um novo modelo de desenvolvimento económico”, insiste o ex-diretor do Instituto de Estudos de Segurança da UE, que vai moderar um dos painéis da conferência internacional em Lisboa. “Precisamos também de uma unidade entre as grandes e médias potências, de um sistema multilateral inclusivo, que não seja liderado apenas pelos países ocidentais, porque o mundo mudou completamente”.

E deve ser superada “a fratura internacional gerada pela guerra da Ucrânia entre a Rússia e seus aliados e as democracias ocidentais e, mais importante ainda, a fratura entre os EUA e a China, porque sem a China não conseguimos chegar lá”. Há potências emergentes “que são também fundamentais neste processo, como a Índia ou o Brasil, que querem ter uma maior representação na ONU e noutras organizações multilaterais”. Em suma, “deve ser criada uma nova ordem internacional que assegure o clima estável como Património da Humanidade”.

Alexandra Aragão, professora de Direito do Ambiente e investigadora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, acha que o clima estável como Património da Humanidade “pode ser facilmente reconhecido no atual regime jurídico, é um passo natural que se segue às declarações de emergência climática de muitos responsáveis políticos, porque se essa emergência existe, há que tirar as devidas consequências”. Mais, “o conceito de Património Comum adequa-se totalmente ao clima, há fundamento jurídico para se defender o dever de inovar juridicamente, criando novas ferramentas e modelos”. Por outro lado, “os instrumentos jurídicos já existentes, como o poluidor-pagador, a responsabilidade comum mas diferenciada, o princípio da precaução ou o princípio de não causar prejuízo (“no-harm rule”), devem ser mobilizados para a proteção do clima estável a nível global não apenas pelos Estados isolados, mas através da cooperação entre estes e da diplomacia climática”.

Entretanto, passar “da realidade local para o contexto global” é o que pretende Sara Moreno Pires, professora e investigadora no Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território da Universidade de Aveiro, que participará, tal como Alexandra Aragão, na conferência internacional em Lisboa. “Precisamos de discutir como partir das cidades e territórios locais para o nível global, como transformá-los em protetores e regeneradores do clima e dos ecossistemas”. Este processo passa por “reduzir a pressão sobre este Património Comum, encontrar mecanismos de financiamento e dar novo valor ao capital natural, à Natureza”. E perceber, a nível de um país, “como há desequilíbrios entre os territórios mais urbanos, com maior pegada ecológica, e os territórios de baixa densidade, que têm maior biocapacidade, isto é, mais capital natural”.

A investigadora liderou o projeto-piloto “Pegada Ecológica dos Municípios Portugueses” que envolveu o cálculo e a interpretação da pegada ecológica e da biocapacidade de 18 municípios de todo o país e da Comunidade Intermunicipal da Região de Aveiro, com o objetivo de fortalecer a capacidade local em matéria de ambiente, influenciar políticas de coesão territorial e promover novos instrumentos e políticas públicas para o desenvolvimento sustentável.

Desenvolvimento sustentável passa por soluções disruptivas

As alterações climáticas “são atualmente uma realidade global irrefutável”, considera Pedro Ávila, diretor de Sustentabilidade Operacional da REN, uma das empresas que integram o Grupo de Missão para o Reconhecimento do Clima como Património Comum da Humanidade. “O desígnio do desenvolvimento sustentável, com impactos transversais na vida das pessoas e das empresas, e alicerçado em políticas e compromissos globais, passa também pela proposta de soluções disruptivas e estruturais, como o reconhecimento do clima como Património da Humanidade”. Este percurso, “naturalmente longo, multidimensional e complexo, permitirá se acometido de êxito, criar um enquadramento favorável a nível global para o desenho de políticas que contribuam para o combate às alterações climáticas, com as vantagens daí decorrentes”.

O setor energético onde a REN se insere “assume uma importância vital no combate às alterações climáticas e os desafios não têm paralelo pela sua escala, velocidade e necessária manutenção de elevados padrões de segurança de abastecimento”, sublinha Pedro Ávila. “A empresa tem visto o seu papel reforçado enquanto facilitadora desta transição, tendo em vista o cumprimento das metas nacionais de política energética e da Lei de Bases do Clima”. Acresce que “o envolvimento das comunidades em que a REN está inserida são norteados por princípios de sustentabilidade e constituem marcas distintivas que pretendem ser um contributo para o clima e para o restauro de ecossistemas, nomeadamente ao nível das florestas”.

Ana Mesquita Veríssimo, gestora de Sustentabilidade da Vodafone Portugal, outra empresa que integra o Grupo de Missão, reconhece que “temos vindo a assistir à intensificação de fenómenos naturais extremos, que representam um risco crescente para a saúde humana, as infraestruturas, a estabilidade dos recursos alimentares e hídricos e a biodiversidade dos ecossistemas do planeta”. Sendo as alterações climáticas “uma preocupação transversal a toda a Humanidade, um fenómeno sem fronteiras, este conceito de se olhar para o Clima como Património Comum da Humanidade, embora de complexa aplicação, é uma medida inovadora que contribuirá, certamente, para reverter este desafio criado pela ação humana”, conclui a gestora.

“O combate às alterações climáticas deverá passar pela mudança de hábitos e utilização dos recursos disponíveis de forma inovadora ao nível dos governos, empresas, entidades sem fins lucrativos e cidadãos comuns”. A Vodafone “tem tido uma abordagem holística para a redução da sua pegada ambiental e tem a ambição de atingir a neutralidade carbónica até 2040, de modo a contribuir para que a temperatura média global não ultrapasse os 1,5 graus, a meta mais ambiciosa do Acordo de Paris”.

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