Exclusivo

Sociedade

O mundo no olho dos furacões, chuvas extremas e ondas de calor: como o Homem está a mudar o clima

Um carro atravessa um bairro inundado depois de o furacão Ian ter passado por Fort Myers, Flórida, no final de setembro
Um carro atravessa um bairro inundado depois de o furacão Ian ter passado por Fort Myers, Flórida, no final de setembro
RICARDO ARDUENGO

Quase metade da população mundial está exposta a eventos climáticos extremos, mas os países pobres e populosos serão os mais afetados. Entre furacões destrutivos, chuvas torrenciais que causam inundações, e ondas de calor intensas, a influência humana no clima é já “avassaladora” — e nos locais onde a situação se tornar insustentável, os refugiados climáticos só terão uma opção: emigrar

Ian atingiu Cuba no final de setembro e cresceu nas águas quentes do Golfo do México, enquanto se movia em direção à costa do Golfo da Flórida, nos Estados Unidos. O furacão alcançou a categoria quatro — a segunda mais elevada —, com ventos de 240 quilómetros por hora e fortes chuvas que aumentaram pelo menos 10% devido às alterações climáticas, que “não causaram o furacão, mas tornaram-no mais húmido”, concluiu uma investigação preliminar de cientistas americanos. Não é claro que a crise climática esteja a aumentar a frequência dos ciclones tropicais, mas está a torná-los mais intensos, explicam dois climatologistas ouvidos pelo Expresso.

Graças ao aquecimento global, a temperatura da água do mar tem aumentado à superfície e nas primeiras dezenas de metros em profundidade, o que faz com que a intensidade dos furacões aumente. “A água quente gera muita evaporação do mar para a atmosfera. Essa água que evapora sobe e pouco depois condensa logo, passando outra vez ao estado líquido. É a mudança de fase da água que liberta muita quantidade de energia”, explica Alfredo Rocha, professor de meteorologia e climatologia na Universidade de Aveiro.

O aumento da temperatura tem outras implicações: “cada vez se encontram furacões a latitudes mais elevadas”, nota o geofísico Ricardo Trigo. Basta pensar no Danielle que chegou a Portugal há um mês em forma de tempestade e “foi o furacão mais a norte alguma vez registado”. Também em setembro, o ciclone tropical Fiona atravessou toda a costa dos EUA e foi quase até à Gronelândia. “A razão pela qual vão até norte e não morrem antes é porque a temperatura da água do mar está muito acima do normal e permite abastecê-los de energia”, explica ainda.

Furacões mais intensos provocam mais precipitação — e mais cheias. “Quer as tempestades normais de inverno, quer os furacões nos trópicos levam mais água, em média, agora do que levavam há 50 anos”, constata Ricardo Trigo, especialista em Variabilidade e Extremos Climáticos no Instituto Dom Luiz, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Isso aconteceu com o Ian: 10% da chuva não teria ocorrido se não tivesse havido alterações climáticas, de acordo com o estudo do Laboratório Nacional Lawrence-Berkeley, sob a tutela do Ministério do Meio Ambiente dos EUA.

As fortes tempestades do Ian, com ventos e inundações devastadoras, causaram pelo menos 85 mortos na Flórida, Carolina do Norte e Carolina do Sul, e centenas de feridos, além das milhares de pessoas que tiveram de ser resgatadas de zonas inundadas. Estima-se que o furacão que arrasou a costa do sudeste dos Estados Unidos, há duas semanas, tenha causado 67 mil milhões de dólares em prejuízos, tornando-se a tempestade mais cara na história da Flórida desde o furacão Andrew, em 1992.

Uma imagem de satélite disponibilizada pela NASA mostra o furacão Ian depois de se ter deslocado da costa noroeste de Cuba
MODIS LAND RAPID RESPONSE TEAM, NASA GSFC HANDOUT

Aumento da chuva no Paquistão “pode ser inteiramente devido às alterações climáticas”

Além dos furacões, há outros fenómenos que estão a tornar-se mais intensos graças ao Homem. Recentemente, no Paquistão as alterações climáticas terão aumentado as chuvas intensas que colocaram um terço do país debaixo de água, segundo um estudo da World Weather Attribution. “A precipitação extrema na região aumentou 50 a 75% e alguns modelos sugerem que este aumento pode ser inteiramente devido às alterações climáticas”, lê-se na conclusão citada pela Organização Mundial de Meteorologia.

Cerca de 33 milhões de paquistaneses foram afetados pelas cheias, pelo menos 1200 pessoas morreram e 6000 ficaram feridas. A estação chuvosa de agosto, que durou semanas, deixou um rastro de destruição no país: 300 mil casas foram completamente destruídas, 3500 quilómetros de estradas ficaram danificadas e mais de 735.000 cabeças de gado perderam-se. “Nenhum país merece esse destino, mas particularmente não países como o Paquistão, que não fizeram quase nada para contribuir para o aquecimento global”, lamentou, na altura, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres.

O ministro paquistanês do Planeamento, Desenvolvimento e Reforma concordou. “O Paquistão é um contribuinte insignificante para a pegada global de carbono, ainda assim encontra-se entre os 10 países mais vulneráveis às alterações climáticas e com eventos climáticos extremos”, lamentou Ahsan Iqbal. Além das inundações causadas por chuvas de monção recordes e glaciares derretidos nas montanhas, esta nação do sul da Ásia sofreu ainda ondas de calor e incêndios florestais este ano.

Países pobres e populosos são os que vão sofrer mais

“Os países que mais vão sofrer as consequências das alterações climáticas são os mais pobres, populosos e com menos meios para mitigar os efeitos destes eventos extremos”, alerta Alfredo Rocha, investigador do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar. Toda a faixa do Médio Oriente até ao Afeganistão e Paquistão é particularmente vulnerável, complementa Ricardo Trigo, não só pela questão climática mas por toda a instabilidade política e social. “Quando falamos de refugiados climáticos falamos de um conjunto de fatores em que o clima é um deles”, esclarece o especialista.

Também na América Central, a Guatemala, Nicarágua, El Salvador e parte do sul do México estão sob grande pressão. E em África, a região do Sahel — uma faixa com 5400 quilómetros de extensão — é especialmente preocupante devido à seca (e aos conflitos armados). “Se um agricultor na região do Sahel passar a ter mais secas em anos consecutivos, a única coisa que ele pode fazer é deslocar-se para zonas com mais água. Não há meios nenhuns para ficar no mesmo sítio e sobreviver”, adverte Alfredo Rocha. Assim, nos locais onde a situação se tornar insustentável, as pessoas não terão opção a não ser emigrar.

Uma vaca pasta num terreno desertificado e infértil, afetado pela seca, na aldeia africana de Mbelogne, no Sahel
AFP

Influência humana é “avassaladora” nas ondas de calor

Quase metade da população mundial — cerca de 3,6 mil milhões de pessoas — está exposta a eventos climáticos extremos, como subida do nível médio da água do mar, cheias, ondas de calor, secas e fogos florestais, segundo o relatório “Impactos, Adaptação e Vulnerabilidades” do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), divulgado em fevereiro deste ano.

Nas zonas com climas mediterrâneos, ou seja, na Península Ibérica, França, Itália e Grécia, mas também no sudoeste dos Estados Unidos, Austrália e Chile, já se verifica uma maior tendência para a ocorrência de ondas de calor, seca e incêndios florestais. “Estes três extremos andam sempre de mãos dadas em sítios onde a água é um fator limitante muito forte”, e tendem a baixar a produção agrícola dos países onde ocorrem, afirma o geofísico Ricardo Trigo.

Não é preciso traçar cenários futuros: nas ondas de calor, a influência humana já é “avassaladora” no clima que vivemos atualmente. Segundo o climatologista, cerca de 80 a 90% das ondas de calor mais intensas agora — que nem sequer ocorreriam há algumas décadas — devem-se às alterações climáticas, em particular às “emissões de gases com efeitos de estufa enviadas para atmosfera nos últimos 200 anos”, conclui.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: mtribuna@expresso.impresa.pt

Comentários

Assine e junte-se ao novo fórum de comentários

Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes

Já é Assinante?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate
+ Vistas