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Ritmo de trabalho e "exigências" intelectuais: trabalhadores da função pública enfrentam riscos psicológicos graves

Ritmo de trabalho e "exigências" intelectuais: trabalhadores da função pública enfrentam riscos psicológicos graves
Christopher Furlong/Getty Images

Mais de metade dos riscos psicossociais avaliados num estudo promovido pela Direção-Geral da Administração e do Emprego Público foram identificados como “moderados”. Entre esses riscos, encontram-se a “satisfação no trabalho”, "conflito trabalho/família”, “burnout”, “stress” e “sintomas depressivos”. Bastonário da Ordem dos Psicólogos, entidade parceira no estudo, defende que sejam implementadas medidas "rapidamente", garantindo mais "autonomia" aos funcionários e uma “simplificação dos processos” na administração pública

Ritmo de trabalho e "exigências" intelectuais: trabalhadores da função pública enfrentam riscos psicológicos graves

Helena Bento

Jornalista

Os trabalhadores da função pública enfrentam riscos graves relacionados com o "ritmo de trabalho", as "exigências cognitivas" e as "exigências emocionais". Esta é a principal conclusão de um estudo sobre os riscos psicossociais na administração pública promovido pela Direção-Geral da Administração e do Emprego Público (DGAEP).

Segundo o estudo, que contou com a participação de cerca de 23.500 funcionários de 77 entidades públicas (a maioria da administração direta do Estado) e foi realizado em parceria com a Ordem dos Psicólogos Portugueses, a atividade profissional é "percecionada como sendo desenvolvida a um ritmo acelerado e exigente, por vezes sem pausas, visando a conclusão das tarefas no tempo previsto". Isso explicará por que razão o "ritmo de trabalho" é encarado como um fator de risco "severo", segundo a classificação que é feita no documento divulgado recentemente, intitulado "Estudo de Avaliação dos Riscos Psicossociais na Administração Pública".

As "exigências cognitivas", que também aparecem como um fator de risco "severo", estão associadas à necessidade de fazer um "esforço mental elevado para processamento de informação" e de manter níveis "elevados" de concentração, verificando-se, ao mesmo tempo, um "excesso de solicitações sensoriais, cognitivas e intelectuais". O resultado desta combinação é óbvio, traduzindo-se em "fadiga mental", refere o estudo.

Administração pública: uma "máquina muito rígida, pesada, lenta e pouco flexível"

Segundo Francisco Miranda Rodrigues, bastonário da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), este "esforço cognitivo e intelectual" que os trabalhadores da função pública reportam advém da perceção de "falta de competências para lidar com determinada exigência". Isso poderá estar relacionado com uma efetiva "falta de formação" — não tendo os funcionários as "competências necessárias para realizar determinadas tarefas" —, mas também com o contexto de pandemia em que o estudo foi realizado.

A recolha de dados foi feita entre 13 de maio e 16 de julho de 2021. "Havia um desconhecimento muito grande sobre o vírus por parte dos profissionais de saúde. Durante muito tempo, estiveram a apalpar terreno, o que causou problemas psicológicos", diz o bastonário, acrescentando que "perante o nível de ameaça que existia, dificilmente os riscos poderiam ter sido totalmente mitigados".

"Há uma diferença considerável nos riscos que enfrentam as mulheres e os homens. A desigualdade é muito clara. Não sendo uma surpresa, isso deve continuar a preocupar-nos."

A própria estrutura da administração pública, que "é uma máquina muito rígida, pesada, lenta e pouco flexível", poderá explicar a identificação das "exigências cognitivas" como um fator de risco grave, sublinha Francisco Miranda Rodrigues, referindo que se as organizações estiverem "muito constrangidas em termos do investimento que podem fazer no desenvolvimento de competências, as pessoas vão-se sentindo cada vez mais incapazes de lidar com o trabalho."

Assim, é importante "desburocratizar" a administração pública e torná-la mais "flexível", incluindo ao nível da contratação, para evitar que os funcionários públicos "cristalizem numa determinada função e sintam, a dada altura, que já não têm competências para a desempenhar", defende o bastonário. Também é necessário "simplificar processos" e garantir que os funcionários têm mais "autonomia" para "assumir responsabilidades e tomar decisões". "A desmotivação dos trabalhadores vem, muitas vezes, desta falta de autonomia. Sentem que passaram todos os limites e não conseguem continuar."

De resto, os próprios resultados do estudo mostram que à medida que aumenta o tempo de serviço na administração pública, mais riscos graves enfrentam os trabalhadores. Também estão em pior situação os que trabalham em organismos de grande dimensão, com mais de 250 trabalhadores — "há uma hierarquização e necessidade de controlo de processos maiores" — e as mulheres. "Há uma diferença considerável comparativamente aos homens. A desigualdade é muito clara. Não sendo uma surpresa, isso deve continuar a preocupar-nos", destaca Francisco Miranda Rodrigues.

Para ajudar os trabalhadores a lidar com estas "exigências cognitivas", também é importante garantir que têm "mais formação" e que são acompanhados através de outros mecanismos e práticas, nomeadamente o "coaching psicológico", que "pode ajudar a pessoa a desenvolver competências de forma mais personalizada", a "mentoria", com a supervisão de determinadas tarefas, e a "consultoria", de que poderão beneficiar as "lideranças" que se sentem "sobrecarregadas" com "desafios específicos", aponta o bastonário.

Entidades devem avaliar se "nível de exigência é razoável"

No estudo, os riscos psicossociais em contexto laboral são descritos como um "dos grandes desafios contemporâneos para a saúde e segurança", estando associados "a problemas como o stress, violência, assédio e intimidação", bem como ao "desenvolvimento ou agravamento de perturbações mentais". Na avaliação da DGAEP, foram considerados 29 fatores de risco, cada um assumindo uma cor diferente, numa lógica de "semáforo", consoante o impacto para a saúde psicológica dos funcionários — a cor vermelha corresponde a risco "severo", o amarelo identifica o risco "moderado", e o verde, o risco "favorável" ou baixo. Foi traçada uma avaliação geral mas também por diferentes categorias, da dimensão do organismo e antiguidade dos funcionários públicos à idade, sexo, estado civil, existência de filhos menores, situação profissional e local de residência.

Como fator de risco grave para a saúde psicológica foram também identificadas as "exigências emocionais", relacionadas com a necessidade de lidar com o "sofrimento, doença, dor ou morte", ou de demonstrar "emoções diferentes" daquelas que se sente. É dado o exemplo da "simpatia" por oposição ao "tédio". Segundo o estudo, estas exigências também estão associadas a "isolamento físico ou social" e a contextos sociais "disruptivos", como o trabalho com pessoas com comportamentos aditivos, vítimas de abusos e população reclusa.

Francisco Miranda Rodrigues volta a justificar estes dados com a pandemia — que criou sofrimento psicológico na população em geral, deixando-a mais "vulnerável" — mas acrescenta outra explicação relacionada com alterações no mercado de trabalho. "Hoje em dia, as competências socioemocionais são cada vez mais valorizadas pelas lideranças, uma vez que a forma como os trabalhadores interagem entre si influencia a sua motivação e desempenho." As organizações, acrescenta o bastonário, "esperam mais das pessoas a esse nível mas as pessoas nem sempre têm essas competências." Cabe à organização, defende, avaliar se "o nível de exigência é razoável" e, se concluir que não, "redimensionar os objetivos que foram traçados".

Mais de metade dos riscos identificados como “moderados”

Segundo o estudo, fatores como as "possibilidades de desenvolvimento", "transparência do papel laboral desempenhado", "recompensas", "confiança vertical", "significado do trabalho", "insegurança laboral" e "comportamentos ofensivos" representam um risco baixo para os funcionários públicos.

Ainda assim, mais de metade dos riscos avaliados foram identificados como "moderados". Entre esses riscos, encontram-se a "previsibilidade" do trabalho, "conflitos laborais", "apoio social de superiores", "justiça e respeito", "satisfação no trabalho", "conflito trabalho/família", "burnout", "stress" e "sintomas depressivos", num total de 16. Francisco Miranda Rodrigues comenta que "todas as organizações têm problemas" e que estes são "inerentes ao trabalho". "Retiramos satisfação do trabalho mas também temos problemas." O mais importante, sublinha, é que não sejam ultrapassados "determinados limites", sendo necessário "implementar planos de prevenção dos riscos identificados como graves", que requerem uma "intervenção imediata e prioritária". "É preciso implementar medidas rapidamente e dar sinais concretos. Não nos podemos ficar pelas intenções."

A DGAEP prevê criar, a partir do segundo semestre de 2022, uma rede informal dedicada aos riscos psicossociais na administração pública com os organismos públicos que participaram na iniciativa. Num e-mail enviado ao Expresso, a entidade explica que através dessa rede vai desenvolver trabalho no sentido de "verificar quais as medidas passíveis de aplicação pelos serviços e proceder ao acompanhamento do desenvolvimento das mesmas". Será dada prioridade a fatores de risco identificados como graves em cada entidade, "sem descurar os fatores sinalizados como de risco moderado".

Segundo o bastonário da OPP, também é necessário tornar este tipo de avaliações "regulares" e alargá-las a todo o setor privado, "para evitar que os problemas se tornem ainda mais graves e tenham um impacto maior na vida das pessoas". "Há grandes empresas que não fazem estas avaliações só porque não querem assumir que existem determinados problemas. Mas eles estão lá. Não desaparecem só porque não se fala sobre o assunto."

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: hrbento@expresso.impresa.pt

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