Sociedade

Monólogos da Chacina ou Monólogos da Ignorância?

Corre desde esta quarta-feira um artigo escrito por um homem sobre o atentado ao pudor que são os cartazes dos “Monólogos da Vagina”. Nas suas palavras, uma peça “ordinária e promíscua”, cujos reclames “despoletam comportamentos violentos e abusivos” ao mencionarem a genitália feminina. Sabem o que espoleta a violência sexual? A normalização do machismo. E a forma perversa como se continua a achar que isto da sexualidade feminina é um assunto que pode pertencer publicamente ao domínio da fantasia e dos desejos masculinos, negando, contudo, às mulheres a expressão do seu corpo e prazer para bem dos bons costumes. Será que esta pessoa sabe a importância que esta peça tem tido na luta contra a repressão e violência sobre as mulheres nos últimos 20 anos?

Anda por aí a correr um artigo de opinião escrito por um homem sobre o suposto atentado ao pudor e à beleza da intimidade feminina que é termos cartazes da icónica peça Monólogos da Vagina espalhados por Lisboa. Nas suas palavras, uma peça “ordinária e promíscua”, que pode, em jeito de resumo, traumatizar as crianças que se cruzem com ela. As mesmas crianças a quem devíamos todos ensinar os nomes das várias partes dos seus corpos, genitália incluída, já que são tantos os estudos sobre abuso sexual de menores que explicam como as crianças conhecerem a sua anatomia, e saberem nomeá-la corretamente, tem um impacto direto na prevenção e reconhecimento de situações abusivas.

Mas pronto, isso fica para outro texto. Voltemos ao suposto problema em torno dos cartazes da peça que está em cena no Teatro Politeama e que estão a conspurcar a cidade por mencionarem uma parte do corpo feminino que, aparentemente, deve ficar escondida: será que esta pessoa sabe o que são Os Monólogos da Vagina e a importância que a peça tem tido na luta contra a repressão e violência sobre as mulheres nos últimos 20 anos?

O que este texto de opinião intitulado “Os Monólogos da Chacina” descreve como algo que “massacra as mulheres e o seu íntimo, bem como tantas crianças que se cruzam com os seus reclames”, foi o que o New York Times descreveu como sendo “provavelmente a peça de teatro político mais importante da última década”. Escrita por Eve Ensler, é uma peça que não só quebra tabus sobre a sexualidade das mulheres, o direito ao erotismo e ao prazer no feminino – que em 2022 continua a estar carregado de espartilhos, como se pode ver – , como destrói o silêncio em torno da violência sobre mulheres e raparigas, incluindo a sexual.

Mais, será que quem escreveu isto sabe que desde 1998 foram dezenas de milhares as comunidades e universidades que encenaram atuações solidárias da peça dentro do V-Day (um movimento global criado pela autora), em mais de 200 países, Portugal incluído? E que o intuito dessas leituras tem sido sempre agitar consciências e angariar fundos para acabar com todas as formas de violência contra as mulheres e meninas, entre elas o assédio e abuso sexual, a violência doméstica, a mutilação genital feminina, a exploração sexual, o tráfico humano, etc?

Estamos a falar de mais de 20 anos de um movimento à escala mundial que já conseguiu angariar mais de 100 milhões de euros, dinheiro que foi usado para coisas tão distintas como financiar centros de crise para vítimas de violação e casas-abrigo para quem sofre violência doméstica, sustentar uma coligação alargada de grupos para a defesa do fim da violência no local de trabalho (desde a hotelaria à agricultura) ou ações de reeducação de comunidades, por exemplo.

O problema do “uso desordenado do sexo” é a palavra vagina

Diz ainda o dito texto que “a banalização de assuntos da intimidade da figura feminina, que é o que originam estes monólogos, é perigosa e pouco prudente, pois facilmente conduz a uma materialização do próximo e a um uso desordenado do sexo”. Se não conseguem perceber o que é isto do uso desordenado do sexo, a entrada da dita prosa explica que se trata de “despoletar comportamentos violentos e abusivos”. Sabem o que espoleta (espoleta, Francisco) a violência sexual? A normalização do machismo que serve de base a textos como este. A forma perversa como se continua a achar que isto da sexualidade feminina é um assunto que pode pertencer publicamente ao domínio da fantasia e desejos masculinos, negando, contudo, às mulheres a expressão da sua sexualidade para bem dos bons costumes.

O que espoleta a violência é esta assunção de que um cartaz de uma peça de teatro pode provocar comportamentos “desordenados” nos rapazes e nos homens, que, coitadinhos, não têm capacidade cognitiva e física para travar os seus ímpetos sexuais ao serem confrontados com algo como a palavra “vagina”. O que é abusivo é continuarmos a infantilizar os homens e a arranjar desculpas como esta para as agressões masculinas que todos os anos matam milhares de mulheres e meninas mundo fora. O que é grave é a forma como continuamos assim a colocar nos ombros das mulheres o peso da manutenção da sua própria segurança no espaço público. O que é grave é camuflarmos estas tentativas de controlo das mulheres e dos seus corpos enquanto nos fazem acreditar que o que está em causa é a nossa proteção e o nosso bem. Promíscuo é isto de continuarmos a fazer juízos de valor às mulheres que expressam livremente a sua sexualidade, rotulando-as de putas, galdérias e demais estereótipos que nos condicionam a liberdade individual desde miúdas. O que é preocupante é que que 2022 surjam homens jovens, que têm toda a informação do seu lado, a perpetuarem a ideia de que a intimidade feminina é um tabu a ser mantido a todo o custo. E a fazer este exercício ridículo de mansplaining, ao dizerem por nós o que uma peça como os Monólogos da Vagina significa para a intimidade das mulheres.

Vagina, va-gi-na. Digam-no, oiçam-no, escrevam-no, até perderem o medo, a vergonha e o pudor quanto a esta palavra que tantas vezes ainda é proferida em sussurro, como se fosse algo a esconder e não uma parte da nossa anatomia. As vaginas existem e merecem ser respeitadas, consideradas e celebradas como qualquer outra parte do corpo, e não como aquela coisa que toda a gente sabe que existe, mas que toda a gente teme dizer em voz alta porque pode ofender a moral alheia. Essa celebração da vagina, em jeito de alerta para todos os problemas sociais, culturais e económicos de que quem tem uma no seu corpo enfrenta, é o que Os Monólogos da Vagina faz. “É sempre tudo tão sombrio e secreto em torno delas, parecem o Triângulo das Bermudas”, frase escrita em 1998 por Eve Ensler, mas que em 2022 continua a fazer tanto sentido. Haja pachorra.

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