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O direito ao silêncio, o direito à denúncia, o direito a dizer ou não dizer nomes, o direito à proteção: lições sobre as vítimas de assédio

Discussão sobre a campanha contra o assédio sexual "#MeToo" no Parlamento Europeu em outubro deste ano
Discussão sobre a campanha contra o assédio sexual "#MeToo" no Parlamento Europeu em outubro deste ano
CHRISTIAN HARTMANN/REUTERS

Por cada pessoa que denuncia publicamente tentativas de assédio sexual de que foi alvo há outras que exigem perceber porque é que a denúncia só foi feita naquele momento e por que razão não foi apresentada queixa. Também se exige nomes, os nomes dos que assediam, “como se tudo fosse à partida mentira e elas tivessem de provar que é verdade, que não estão a inventar, revelando os nomes” - exigir isso pode fazê-las sentir-se “ainda mais culpadas” porque “não é simples, não é chegar ali e simplesmente denunciar, atirar nomes”. Porque a vítima não se pode sentir culpada por ser vítima - e às vezes nem sempre nos lembramos disso

O direito ao silêncio, o direito à denúncia, o direito a dizer ou não dizer nomes, o direito à proteção: lições sobre as vítimas de assédio

Helena Bento

Jornalista

Porquê só agora? A pergunta é quase sempre colocada de cada vez que alguém, por vezes uma figura pública porque apesar de tudo ainda lhes resta uma voz, decide falar publicamente sobre situações de assédio sexual de que foi alvo no passado. Essas histórias tendem a ser reveladas mais tarde e quase sempre demasiado tarde, quando já nem sequer é possível apresentar queixa — e, mesmo que fosse, a maioria das queixas acaba arquivada. Para Ricardo Barroso, psicólogo e docente na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), o que mais inibe alguém de falar é a “perceção da dificuldade da prova”. “Habitualmente, este processo de assédio é muito subreptício, em termos de estratégia. Não é nada direto. Pode haver uma abordagem mais direta mas muitas vezes a vítima pode ter a perceção de que a pessoa que a assediou irá alegar uma série de coisas no sentido de a descredibilizar, nomeadamente que a insinuação não passou, afinal, de um comentário vago, feito para o ar, sem um destinatário concreto.”

É essa “perceção da dificuldade da prova”, sublinha ao Expresso, “que leva muitas pessoas a não denunciar logo no momento”. Por outro lado, acrescenta, “há sempre muita surpresa, a pessoa não sabe o que fazer, fica inibida ou mesmo chocada com o que aconteceu e isso deixa-a retraída”, paralisando-a mesmo. Tudo isto terá, obviamente, que ver com o contexto social e cultural em que as denúncias são feitas. “Pode também haver a perceção de que as outras pessoas não só não vão ouvir como vão achar que colaborou de alguma forma ou foi responsável por dar início àquilo.” Tudo conjugado, dá nisto - “a vítima acaba por desistir”.

Especialista em questões como a violência nas relações, que tem analisado também da perspetiva de quem pratica o assédio e a agressão, Ricardo Barroso dá o outro lado: “Há uma perceção de invulnerabilidade. É quase o contrário do que acontece com a vítima. Sabe que dificilmente terá uma queixa apresentada contra si e que socialmente vai estando protegido ou protegida, logo continua”. Um detalhe que nem o é bem, porque não é pequeno: “Estas pessoas que assediam sexualmente não são predadores, no sentido de terem alguma perturbação do ponto de vista psicológico ou psiquiátrico. São iguais às outras. Simplesmente estão habituadas a ter determinado tipo de comportamento ao nível da sexualidade, precisamente porque sentem a tal invulnerabilidade de que falávamos. Sabem que é difícil para a vítima provar algo e que fica atrapalhada, sem conseguir reagir. E utilizam essas circunstâncias a seu favor”. Das mulheres — ou homens, que também acontece, embora bem menos — têm “uma percepção muito específica”, acrescenta o psicólogo e docente. “Sentem que podem dizer e comentar qualquer coisa, fazer qualquer coisa e que eventualmente podem até tocar. Que podem fazer o que quiserem, até pela posição hierárquica que muitas vezes ocupam, cabendo ao outro lado encaixar esse tipo de abordagem. Os outros são encarados como um objeto.”

Crescem os exemplos, cresce a perceção de segurança e de proteção, cresce o “à vontade” para denunciar

Renata Benavente, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos e psicóloga no Agrupamento de Centros de Saúde Almada-Seixal, onde acompanha utentes numa consulta criada especificamente para lidar com as questões da violência, fala desde logo numa “denúncia condicionada” - condicionada por “sentimentos de culpa e vergonha” sentidos pela vítima. Mas não é só isso: “Frequentemente, acaba por ser a palavra de um contra o outro, da vítima contra o agressor. A haver testemunhas, elas não querem colaborar nestes processos e o receio de descredibilização do seu testemunho leva a que a vítima não denuncie.”

O que acontece de seguida é “um estado de negação”. “São adotados mecanismos psicológicos de negação. Como se a experiência ficasse encapsulada, por gerar tanto sofrimento. A pessoa opta por não pensar muito no assunto, uma vez que as lembranças que tem são muito traumáticas.” No fundo, escolher “preservar a sua saúde mental”. “Evitar pensar sobre o que aconteceu é um processo muito comum em situações de trauma.” Daí esconder a situação quando ela ocorre e o nome da pessoa (ou pessoas) que a assediou mesmo quando percebe que não pode ou não consegue continuar a esconder mais, falando finalmente. “Também há receio de eventuais represálias, sobretudo se o agressor ocupar uma posição de poder. Como não há provas, factos que possam ser comprovados, há o risco de a vítima ser alvo de um processo-crime por difamação.” Entram na equação, além disso, outras “justificações até de foro emocional”, nomeadamente “saber que o agressor tem uma família” e não querer prejudicar mulheres, maridos ou filhos.

É também por isso que tantas vezes se resiste a identificar o agressor, mesmo quando a vítima toma a iniciativa de denunciar publicamente a situação nos meios de comunicação social, como foi o caso da atriz Sofia Arruda e da também atriz e apresentadora Catarina Furtado. Há várias barreiras psicológicas e questões que colocam a si próprias: “Será que foi mesmo uma situação de assédio? Terei interpretado mal o que aconteceu? Será que eu não geri bem a situação? Que a provoquei?”. A vítima, reforça a psicóloga, “culpabiliza-se pela própria agressão”. “Coloca-se a si própria em causa, achando que provocou, que deu sinais errados.”

Ricardo Barroso também fala sobre os entraves psicológicos à divulgação de nomes, sugerindo que exigir isso às vítimas é uma forma de descredibilização das mesmas e dos seus testemunhos. “Como se tudo fosse à partida mentira e elas tivessem de provar que é verdade, que não estão a inventar, revelando os nomes.” Exigi-lo é fazê-las sentir-se “ainda mais culpadas”, diz, além do impacto psicológico que isso terá. “Não é simples, não é chegar ali e simplesmente denunciar, atirar nomes, como se isso não tivesse qualquer impacto para a vítima. Com mais ou menos dificuldades, as pessoas que são vítimas de assédio sexual vão conseguindo lidar com o problema ao longo do tempo mas nunca o esquecem. Divulgar nomes acaba por obrigar a reviver um trauma e nem todas as pessoas estão preparadas para isso.” O mais importante é, por isso, “respeitar esse silêncio”. “Há casos em que a pessoa recusou o avanço, que são estes de que temos ouvido falar, mas há muitos, muito mesmos, em que, por um conjunto de circunstâncias, não foi possível resistir ao assédio. E isso, para as vítimas, pode ser terrível. Podem sentir-se horríveis por não terem tido força para resistir.” A ideia de que “do ponto de vista social serão ainda mais crucificadas” e “que terão de se defender sozinhas é terrível”.

A questão não deve ser olhada, contudo, com fatalismo. Não tem de ser sempre assim, não tem de ser sempre assim tão difícil denunciar, e os testemunhos partilhados recentemente com alguns meios de comunicação estão aí para prová-lo: “Haver pessoas que, de facto, dão a cara leva a que outras o façam e que denunciem também. Vimos isso no movimento de denúncia de assédio sexual que ganhou força nos EUA. Houve uma mulher que falou e depois apareceram outras. A coisa tornou-se exponencial.” Daí ser tão importante que alguém fale finalmente, mesmo que seja pela primeira vez, mesmo que tenha passado tanto tempo. “As restantes vítimas vão sentir-se mais capazes de descrever a sua experiência pessoal.” Ricardo Barroso também vê força nestas denúncias recentes: “O movimento #MeToo está a ganhar tração em Portugal. Não é a primeira vez que são feitas denúncias e revelações deste género, mas agora há mais consistência em termos do número de casos. E esta quantidade de denúncias pode aumentar ainda mais, com cada vez mais pessoas a sentirem-se confortáveis para denunciar.” Crescem os exemplos, cresce a perceção de segurança e de proteção, cresce o “à vontade” para denunciar.

“É preciso marcar linhas vermelhas”

Mas não é só isso que pode contribuir para que haja mais denúncias — e para mudar essa ideia de que o assédio é uma coisa normal, que acontece a toda a gente e pronto. Renata Benavente considera que o prazo para a denúncia de coação e importunação sexual (o assédio sexual não se encontra autonomizado no Código Penal, sendo crimininalizado através dos crimes referidos) deveria estender-se para lá dos seis meses determinados atualmente pela lei. “A consciencialização do que realmente aconteceu, este processo emocional da gestão da experiência, interfere na capacidade da vítima para denunciar o crime, atrasando o processo.” Além desta alteração legislativa, a psicóloga considera que seria essencial garantir um “apoio mais especializado”, seja no SNS, através da criação de consultas direcionadas para as situações de violência, seja no que diz respeito à rede de apoio à vítima que existe no país. “O assédio sexual acaba por ficar sempre um pouco de fora. Deveria haver uma resposta mais qualificada e específica para abordar estas matérias e para lidar com estes casos.”

Ricardo Barroso não olha de imediato para a lei. “O que me parece importante é que as entidades e empresas assumam, desde logo, que isto é um problema. Porque o que acontece muitas vezes é que, quando confrontadas com estas situações, dizem que não é verdade ou, se é, é do foro privado, não tendo responsabilidades sobre isso.” Depois, é “necessário que a vítima saiba a quem se dirigir dentro da empresa” e que, posteriormente, sejam feitas as “devidas averiguações”. “As pessoas têm de perceber que isto é um problema e que não pode acontecer. É preciso marcar essa linha vermelha de forma muito clara, até para que as vítimas percebam quando é que a linha foi ultrapassada e saibam, nesse preciso instante, que têm o direito de apresentar queixa às autoridades.”

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