Movimentos anti-vacina: onde termina a ciência e começa o mito?
As opiniões anti-vacinas podem prejudicar a luta contra a pandemia, mas não surgiram hoje. Quem as defende pode ter razões para o fazer
As opiniões anti-vacinas podem prejudicar a luta contra a pandemia, mas não surgiram hoje. Quem as defende pode ter razões para o fazer
Jornalista
A desconfiança em relação às vacinas não começou hoje. Existe desde que elas existem, ou seja, desde há mais de dois séculos. E, tal como hoje, as objeções são de vários tipos, desde as que têm a ver com a saúde, até àquelas que são de natureza religiosa e às que as consideram - sobretudo desde que passaram a ser obrigatórias, nomeadamente para as crianças - atentados à liberdade pessoal.
A primeira vacina para humanos foi destinada a combater a varíola, uma doença que matava cerca de um terço dos doentes. A vacina usava pus infetado com varíola bovina ('vacina' vem de 'vacca', o termo latino para vaca) e protegia contra a forma mais letal da doença que atingia os humanos. À medida que o seu uso passou a ser imposto, a resistência foi crescendo e tornou-se um movimento.
Jonathan M. Berman, em "Anti-vaxxers - How to Challenge a Misinformed Movement" (como desafiar um movimento mal informado), referiu-se, a propósito da legislação do Reino Unido, "como a Lei da Vacinação de 1853 exigiu a vacinação obrigatória de todas as crianças com mais de quatro meses, levantou questões de liberdades civis e numerosas preocupações cívicas e religiosas - sobre os custos da vacinação para os pobres, sobre pôr material de vacas em humanos, sobre preservar a integridade do corpo, e sobre interromper a 'ordem natural'. Aqueles que acreditavam no poder da vacinação para melhorar a saúde e o bem-estar humano e no direito do Estado de impôr a vacinação encontraram-se numa guerra tanto de informação como de cultura".
Berman nota que já então os opositores das vacinas tinham com frequência uma imagem de excêntricos, de marginais, sendo associados a religiões e a práticas médicas alternativas. Nos anos 1880, não era invulgar os trabalhadores de saúde serem atacados por esses ativistas. Foi por essa altura que surgiram várias sociedades antivacina, na Europa (A Liga Contra a Vacinação Obrigatória, em 1866) como nos Estados Unidos (a Sociedade Anti-Vacinação da América, em 1879, seguida de outras).
Em 1898, a lei britânica passou a permitir a objeção de consciência na matéria. Em 1905, uma sentença do Supremo Tribunal americano encontrou uma forma de compromisso ao determinar que os Estados não poderiam vacinar pessoas à força, mas quem se recusasse ficava sujeito a uma multa.
O Brasil também foi pioneiro nesse tipo de resistência. A aprovação da obrigatoriedade das vacinas em 1904 foi seguida de motins, que mataram dezenas de pessoas, e de uma epidemia de varíola que, segundo Berman, vitimou nove mil pessoas só no Rio de Janeiro.
Ao longo do século XX houve vários momentos em que a resistência anti-vacina se intensificou. A gripe espanhola no final da I Guerra Mundial, que matou dezenas de milhões de pessoas, foi um deles, apesar de não ter chegado a produzir uma vacina. Outro teve lugar nos anos 1950, quando vacinas defeituosas levaram milhares de crianças americanas a contrair poliomielite, matando dez e deixando duzentas com sequelas de gravidade variável.
Este acidente contribuiu muito para diminuir a confiança nas vacinas contra essa doença que, em 1988, ainda atingia centenas de milhares de crianças, um número que seria reduzido para algumas dezenas nas décadas subsequentes. Já no presente século, houve recrudescimentos em países como o Paquistão e a Nigéria, em parte alimentados por rumores de que as vacinas são uma conspiração para esterilizar muçulmanos.
A desconfiança em relação às vacinas não é exclusiva dos países em desenvolvimento. Nos Estados Unidos, a revelação de que o governo tinha, entre 1932 e 1972, usado homens negros como cobaias involuntárias num estudo sobre os efeitos da sífilis a longo prazo - receberam meros placebos em lugar de tratamentos que já existiam, tendo 128 deles morrido - gerou uma desconfiança entre as vacinas nessa comunidade, que permanece até hoje.
Outro marco crucial na história dos movimentos anti-vacina ocorreu em 1998, quando um médico britânico, Andrew Wakefield, publicou na revista "The Lancet" um estudo em que afirmava que a vacina tripla contra o sarampo, a papeira e a rubéola estava associada ao autismo nas crianças.
A ligação jamais seria confirmada, tendo sido desmentida pelas provas científicas desde essa altura. No estudo havia falhas importantes e Wakefield tinha conflitos de interesse que o viriam a descredibilizar. Mas não antes de o seu ato ter provocado receios que continuam até hoje.
Embora a revista tenha retirado formalmente o estudo em 2004 e Wakefield tenha ficado oficialmente impedido de exercer a profissão a partir de 2010, tornando-se uma referência clássica de más práticas médicas, manteve a sua posição. Em 2016, realizou um documentário que quase chegou a ser apresentado no Tribeca Film Festival, patrocinado por Robert de Niro.
Face às reações que o anúncio do filme suscitou, De Niro acabou por mudar de ideias. Mas outras celebridades, desde artistas a políticos e até cientistas, foram dando o seu aval público a teorias da conspiração anti-vacina, nos Estados Unidos como noutros países.
O advento das redes sociais contribuiu muito para espalhar essas teorias, multiplicando o seu alcance muito para além daquilo a que podem aspirar as publicações científicas, ou mesmo boa parte da imprensa generalista - e criando as famosas 'bolhas' que têm o efeito duplo de submeter apenas a 'informação' que confirma os preconceitos e de impedir que essa informação fique sujeita ao escrutínio público.
O sucesso das vacinas, ao permitir o desaparecimento quase total de certas doenças, acabou por ajudá-las ao seu regresso, ao reforçar a impressão de que as vacinas já não eram necessárias. Na Europa, França - paradoxalmente, a pátria de Louis Pasteur, uma figura chave na história da vacinação, criador da primeira vacina contra a raiva - está na linha da frente dos países que mais desconfiam das vacinas. As 11 vacinas infantis obrigatórias por lei no país são às vezes citadas como um possível fator nessa resistência.
Em 2019, uma família de turistas franceses com um rapaz de cinco anos que não tinha sido vacinado contra o sarampo provocou um surto da doença na Costa Rica, um país de onde essa doença tinha sido erradicada anos antes. Soube-se, entretanto, que havia outros casos de sarampo na escola que o rapaz frequentava em França.
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