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Covid. “A vacina surgiu mais depressa mas não se tomaram atalhos”: responsável do Infarmed explica como se conseguiu ganhar tempo

Vacina para a covid-19, a esperança de 7800 milhões de pessoas em todo o mundo
Vacina para a covid-19, a esperança de 7800 milhões de pessoas em todo o mundo
JOEL SAGET / AFP / Getty Images

Fátima Ventura, diretora da Unidade de Avaliação Científica no Infarmed, explica ao Expresso como novas técnicas científicas e novos procedimentos de verificação se juntaram para produzir aquilo que para muita gente parece um milagre: vacinas conseguidas em tempos recorde. A especialista conta como é que os investigadores e os reguladores conseguiram ganhar tempo em cada uma das fases

Luís M. Faria

Jornalista

Vacinas contra a covid-19 já começaram a ser administradas em vários países, e estão quase a chegar a Portugal, menos um de um ano após o início da pandemia. A relativa rapidez do seu aparecimento, comparada com os prazos longos associados a outras vacinas do passado, geram desconfiança em muita gente. Para obter um tratamento contra a doença, não se terão seguido atalhos perigosos? A vacina será eficaz? Não terá efeitos secundários perigosos?

Para responder a estas perguntas, é importante compreender o que esta vacina tem de novo, em relação a outras que nos habituámos a tomar desde a infância. O Expresso falou com Fátima Ventura, farmacêutica, diretora da Unidade de Avaliação Científica no Infarmed, e ela própria avaliadora. Ventura é ainda membro suplente de Portugal do Comité de Medicamentos de Uso Humano (CHMP), a última instância da UE que vai dar opinião sobre as vacinas na UE antes da Comissão Europeia.

Antecipando algo dito no fim da conversa, não é de prever que a vida regresse ao que era, ou algo parecido com isso, antes da segunda metade de 2021. Fátima Ventura refere a perspetiva de um inverno já relativamente normal, se tudo correr bem. Para já, ressalva que, não obstante o que as manchetes fazem supor, as vacinas já aprovadas em certos países foram-no para uso de emergência. "Ainda não foram autorizadas para introdução no mercado, nem no Reino Unido, nem nos EUA ou no Canadá", diz.

Uma técnica nova

Para compreender o que torna diferente muitas das vacinas agora desenvolvidas, é essencial perceber o que as distingue das vacinas tradicionais. Enquanto nestas é utilizada uma versão atenuada do patogéneo em questão, seja um vírus ou outro qualquer, agora estão em causa fragmentos de um código genético. Concretamente, o da proteína que aparece nas imagens do vírus com a característica espiga, ou "pico".

"Quando administramos esse código genético numa vacina, as nossas células vão traduzir esse código na proteína do vírus", explica Ventura. "Como por trás não há o código genético do vírus, essa proteína não é infecciosa. Não vamos ficar doentes. O que acontece é outra coisa. Temos umas células especiais, as chamadas células apresentadoras de antigéneos, que apresentam essa proteína a outras células e vão desencadear a resposta imunitária: a produção de anticorpos que se espera sejam neutralizantes. Ou seja, quando aparecer o próprio vírus, eles olham para a proteína que ele traz e dizem: ah, é estranha, vou matá-la. Basicamente, é isso. Essa proteína é a forma de que o vírus tem de entrar nas nossas células. Se os anticorpos a atacarem, o vírus não se liga a elas e não infeta".

Fátima Ventura refere as seis vacinas adquiridas pela UE - "ou melhor, com proposta de aquisição, pois só serão efetivamente adquiridas se forem autorizadas"; duas com RNA mensageiro, a da Moderna e a da BioNTech/Pfizer; a da empresa alemã CureVac, que usa a mesma técnica; uma da SanofiPasteur- GSK; a da AstraZeneca e a Johnson and Johnson, que usam outros vírus, os chamados adenovírus, modificados para não se multiplicarem nas noutras células e que também têm o código genético da proteína do 'pico' do SARS-CoV2. "Nenhuma das vacinas adquiridas em conjunto pela União Europeia é o vírus propriamente dito", resume Ventura. "Todas elas levam, de uma forma ou outra, à produção do tal 'pico'".

Investigação básica estava avançada

Porque é que o processo foi tão rápido em relação às vacinas normais? As razões foram várias, segundo a mesma especialista. Desde logo, a situação de emergência de saúde pública. "Certas fases realizaram-se como habitualmente, mas levaram menos tempo", explica. As empresas já estavam a desenvolver vacinas do mesmo tipo para o SARS-CoV1 e para o MERS. "Como entretanto a pandemia do SARS-CoV1 desapareceu, deixou de haver a possibilidade de fazer ensaios clínicos. Não há possibilidade de verificar se o vírus é eficaz no ambiente. Toda essa investigação estava na gaveta." Isso no que toca ao SARS-CoV, pois em relação ao MERS (ainda hoje um problema no Médio Oriente), o caso é diferente. A Pfizer e a BioNTech também tinham uma parceira para uma vacina contra a gripe com essa tecnologia de RNA mensageiro. "Ou seja, a investigação básica já estava muito avançada. Isso poupou à partida alguns anos", diz Ventura.

Outra diferença tem a ver com os ensaios clínicos. "Eles têm quatro fases, três antes da aprovação e uma última depois. Na fase 1, com números mais baixos e uma população mais jovem. A fase 2 é de seleção da dose. A seguir começa a fase 3, que no caso das vacinas deve abranger dezenas milhares de voluntários, para se ter a certeza da eficácia da vacina. Normalmente as fases são sequenciais. No processo tradicional, espera-se pela conclusão de cada fase para iniciar a seguinte. Mas desta vez, a meio de cada fase, iniciou-se a seguinte.

"Quando já se sabia que era seguro passar a um maior número de indivíduos ou a uma população mais idosa, avançou-se. As fases não ficaram mais curtas, estão é sobrepostas", diz. "Hoje em dia, mesmo em relação às vacinas da Pfizer, que estamos quase prestes a ter no nosso mercado, se tudo correr bem, ainda estão a decorrer estudos da fase 2, ao mesmo tempo que as da fase 3".

Efeitos secundários normais

Algumas incógnitas permanecem. Não se sabe quanto tempo dura a proteção, quantas vezes será preciso tomar a vacina, ou se ela evita apenas que quem a tomar contraia a doença ou também que contagie outras pessoas (os primeiros sinais em relação a isto parecem positivos, mas é cedo para tirar conclusões).

Também os efeitos secundários ainda não são inteiramente claros. Fátima Ventura nota que os ensaios são realizados de forma controlada. "Quando passamos para a população global, é natural que surjam efeitos secundários. Aqueles efeitos que só aparecem quando forem vacinados milhões. Isso é normal. Não é nada que não aconteça com qualquer medicamento. Quando lemos o folheto que vem nas caixas dos medicamentos, vemos lá indicada a frequência dos efeitos secundários: se são comuns, raros, muito raros...".

"Os efeitos referidos até agora nos estudos são os habituais: o durão no braço, o desconforto no corpo... Em geral, são muito semelhantes aos da gripe", diz. Mesmo reações anafiláticas, como as verificadas em dois profissionais de saúde no Reino Unido, estão longe de ser inéditas, garante.

A 'rolling review' e outras novidades

Outra diferença relevante é que a produção industrial da vacina foi antecipada. "Como é que podemos dizer que, poucos dias depois de a Comissão Europeia aprovar as vacinas, já as vamos ter para dar às pessoas? Isso acontece porque as empresas, sob risco, começaram a produzir mesmo antes de estar autorizada. Conseguiram isso com muitos apoios dos governos e de fundações que apoiam a investigação. Houve incentivos para as empresas avançarem o mais que pudessem", explica Ventura, dando o exemplo da BioNtech, que vai comercializar a vacina da Pfizer na Europa e já tem tudo pronto.

Também a forma como as autoridades estão a realizar a avaliação foi diferente agora. "Normalmente temos mais tempo. O processo normal de aprovação de um medicamento são 210 dias na União Europeia. Para determinadas doenças que não têm alternativa terapêutica, esse tempo pode ser encurtado. Já faz parte da nossa legislação. Chama-se avaliação acelerada." Desta vez, a nível da Europa, criou-se um novo mecanismo. À medida que a avaliação vai sendo feita, a empresa vai submetendo esses dados à agência e eles são avaliados. "Chama-se a isso 'rolling review', ou seja, revisão em contínuo", diz Ventura. "Vamos recebendo o livro em capítulos, por assim dizer, e avaliamos cada capítulo. Quando já temos todos os capítulos avaliados, a empresa submete formalmente o pedido de autorização de introdução no mercado. Normalmente, um processo desses leva dois anos, aqui foi muito menos tempo".

Precedentes no tratamento oncológico

A especialista portuguesa menciona igualmente, como outro fator determinante, o empenho de muitas equipas, o reforço de avaliadores que as agências fizeram. E nota que a autorização será condicional, pois os ensaios clínicos ainda não terminaram. "As empresas ficam sujeitas a uma série de condições, com prazos a cumprir. A avaliação não pára, portanto. Se as coisas não estiverem a correr bem, a autorização é retirada."

Se a nova técnica é muito mais rápida do que a tradicional, há motivos objetivos para isso. Na técnica tradicional, "tinha de se cultivar um vírus, eram precisas células, etc. Levava muito tempo. Na técnica do RNA, a primeira fase é a produção do molde a partir de células. Mas a partir daí não se fica dependente de as células crescerem", explica.

A partir do momento em que foi publicado o código genético do SARS-CoV2, "foi muito fácil", acrescenta. "Tirou-se a informação do código genético, fez-se o molde, e com base nisso conseguiu-se produzir muito RNA mensageiro. De resto, são precisas quantidades muito pequenas. Mil vezes mais pequenas do que o usual. Com muito pouco produto, consegue-se vacinar muita gente. Uma técnica rápida, fácil de industrializar, mas claro, como é nova é mais cara do que as outras."

A covid-19 não é a primeira doença em cujo tratamento se usam estas técnicas. "Contra a proteína de um tumor, a abordagem é a mesma", diz Fátima Ventura. "Os medicamentos do cancro, hoje em dia, muitas vezes têm anticorpos - os chamados anticorpos monoclonais. A imuno-oncologia é uma das formas mais eficazes de tratar o cancro. É usar o nosso sistema imunitário para tratar aquilo que é estranho. Seja um vírus, sejam células cancerígenas." A empresa Moderna, lembra, já estava a desenvolver este tipo de abordagem para uma vacina para o cancro.

Não houve atalhos

Com a abertura muito maior da comunidade científica que se verificou este ano, incluindo o aparecimento das plataformas pre-print (i.e., onde resultados de estudos podem ser partilhados quase instantaneamente, sem os meses de espera que implica o processo de publicação em revistas científicas conceituadas), poderá estar em causa nada menos do uma verdadeira revolução científica.

Mesmo assim, foi um ano terrível. Quando lemos que, dois dias depois da publicação do código genético da covid-19, a vacina da Moderna já estava inventada, que toda a mortalidade aconteceu depois disso, há quem suscite questões de natureza ética. A verdade é que não podia ter sido de outra forma. Na ciência há critérios indispensáveis de segurança, e não os ter cumprido à risca, para além de outros efeitos, poderia comprometer a confiança do público nos tratamentos aprovados.
Se os dramas de 2020, ao darem enorme incentivo a uma nova técnica para combater doenças, levarem a avanços contra flagelos que há muito atingem a humanidade, a covid-19 poderá acabar por se revelar, a um certo nível, uma benção para a humanidade. Em todo o caso, para já, há motivos para ter confiança.
"Sim, andámos mais depressa mas tínhamos condições para isso e não se tomaram atalhos", resume Ventura.

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