Sociedade

Ação de limpeza do mar em Cascais: o lixo que quase não se vê é tanto que se torna “chocante”

Ação de limpeza do mar em Cascais: o lixo que quase não se vê é tanto que se torna “chocante”

Associação ambientalista Cascaisea promoveu durante dois sábados seguidos ações de limpeza do mar entre Cascais e São João do Estoril. “Esta é mais uma ação de sensibilização”, mas o lixo recolhido “não tem significado, em termos globais”, diz Miguel Lacerda, o seu presidente, apelando a uma mudança de mentalidades e à ação dos poderes públicos

Quem passar pelo passeio marítimo de Cascais, que liga o centro da vila a São João do Estoril, poderá ser tentado a pensar que as praias estão totalmente limpas. Afinal são uma das mais-valias deste concelho e são limpas regularmente durante a época balnear.

Mas mal se entra no areal e se começa a olhar com cuidado para a areia facilmente se verifica o contrário. Há muitas pequenas partículas de plástico que passam despercebidas e só são vistas se andarmos à procura delas - as bolas de esferovite são uma constante – e há muitos cotonetes, a fazer lembrar que há quem continue a atirar os cotonetes de plástico pela sanita - há muito que se encontram à venda cotonetes feitos com papel nas lojas da grande distribuição.


Junto às rochas no meio da praia encontram-se mesmo objetos de plástico com alguma dimensão. Aqui é deixar a imaginação funcionar. Pode ser uma garrafa de água, pode ser uma caneta, pode ser uma lâmina de barbear, podem ser talheres de plástico.

Mas foi entre as rochas que se revelou todo um mundo escondido de lixo que dificilmente se poderia imaginar: muito material de pesca, com destaque para as redes, e até pneus povoam o espaço entre rochas – e a sua recolha é demorada e difícil.

Para quem não está habituado a estas andanças, o lixo encontrado pelas cerca de 50 pessoas que nos dois últimos sábados participaram nas ações de limpeza promovidas pela associação ambiental Cascaisea não tem outro nome: “chocante”. É esta a palavra usada por Miguel Lacerda, presidente da Cascaisea (que junta o nome da vila à palavra inglesa ‘sea’, ou seja, ‘mar’ em português), para quem, no entanto, a quantidade de lixo encontrada não constituiu surpresa. O lixo choca quem participa pela primeira vez nestas ações e quem passa no passeio marítimo e se detém a contemplar todo o tipo de materiais de plástico e não só que são retirados das rochas, mas não choca quem anda há anos a promover ações de limpeza e a apelar para a conservação do mar – sem fundamentalismos, esclarece este apaixonado pelo mar.

No primeiro sábado, dia 19 de setembro, a ideia era ir da praia da Poça, em São João do Estoril, até à praia dos Pescadores, no centro de Cascais, mas a quantidade de lixo não o permitiu. Os voluntários ficaram a meio caminho e tiveram de retomar o trabalho este sábado. É que o pior estava para vir. Entre as rochas, sem estar visível por quem ali passa, encontrou-se todo o tipo de lixo, com destaque para as redes de pesca. Quem se aventurou mais para a frente, entre o Tamariz, no Estoril, e o Monte Estoril, encontrou um mundo de lixo escondido mesmo à frente da estação de comboios do Monte Estoril. O lixo era tanto que surpreendia quem passava, à medida que os sacos de recolha se iam avolumando.

De sábado a sábado, duas datas a reter. O primeiro, 19 de setembro, foi o Dia Internacional da Limpeza Costeira. E este sábado, 26 de setembro, foi o Dia Mundial do Mar. Datas simbólicas que permitem chamar a atenção para o problema.

Miguel Lacerda divide-se entre a satisfação do dever cumprido e a insatisfação – ou até frustração - por não ter conseguido ir mais além. E a clara consciência de que estas ações não são “nada” no que diz respeito à recolha de lixo. Mas são – estão a ser – “muito” na sensibilização das pessoas para o problema do lixo.


“Só não apanhámos mais lixo porque não temos materiais para isso, não temos meios, somos uma associação ambiental sem fins lucrativos que não tem apoios, a não ser alguns que vou conseguindo através de amigos”.

Saímos de lá muito frustrados porque a maior parte do lixo ficou lá porque não tínhamos materiais para o tirar dali, tirámos um bocadinho do que lá está. Tirámos 3 pneus e ainda ficaram lá muitos, até com jantes lá havia pneus, diz. A maior parte do lixo que foi apanhado tem origem na pesca, pelo menos 80% era garantidamente, diz.

“Esta é mais uma ação de sensibilização, mas o que fizemos nestas ações é zero, não tem significado em termos de impactos ambientais, em termos globais”, acrescenta.
“Tirámos dali este sábado uma tonelada e meia de lixo mas isso não é nada comparado com as toneladas de lixo que entraram na mesma altura no mar”, acrescenta. “O que estamos a fazer é praticamente nada, é mais chocar as pessoas para que percebam que todos temos de agir e tomar uma atitude”.


“Todos os plásticos que estão enfiados no enrocamento do Monte Estoril vão transformar-se em microplásticos, é uma questão de tempo porque o mar está ali a bater, só vão sair dali em partículas e isso vai entrar na cadeia alimentar das espécies”, esclarece.

Esta é a parte da insatisfação, porque a satisfação vinha das reações das pessoas que iam passeando no Paredão – como é conhecido o passeio marítimo desta vila das imediações de Lisboa. “Cada vez que eu trazia a carrinha cheia de lixo para o ir despejar as pessoas batiam palmas”.

“A ideia foi mais recuperar aquele espaço e que as pessoas que vão a passar no Paredão vejam a quantidade de lixo que ali está escondido e concluírem como é impressionante o que está ali de plásticos, começarem a pensar mais nestas coisas”.

O presidente da Cascaisea durante as ações de limpeza

Qual a solução?

Rejeitando ‘extremismos’, o presidente da Cascaisea diz que “felizmente as mentalidades estão a mudar mas infelizmente por outro lado cada vez temos mais lixo”.

“Eu não sou fundamentalista, apenas gostava que os nossos filhos pudessem usufruir dos oceanos como eu usufrui porque toda a minha vida foi passada no mar e o que eu vejo é que de dia para dia as coisas estão piores”, afirma Miguel Lacerda.

“É preciso reduzir o lixo produzido”, responde quando questionado sobre os caminhos a seguir para combater o lixo nos mares. “Eu não sou contra os plásticos, uso plástico em tudo, é uma matéria prima fantástica mas as pessoas têm de perceber que quando utilizamos esse plástico temos de lhe dar um destino, temos de assegurar que pode ser reutilizado ou reciclado. Há países que reciclam mais de 90% do seu plástico. Porque é que em Portugal não saímos da cepa torta e andamos nos 9%? As pessoas têm de mudar o chip”, afirma.

“Hoje fala-se no lixo dos oceanos porque há redes sociais porque mais ninguém se preocupava com isso. Isso já começa a incomodar e se toda a gente partilhar imagens do lixo que encontra nas praias os políticos começam a preocupar-se com o problema. Quando comecei a falar do lixo marinho chamavam-me ‘fritado da cabeça’, diziam que era maluco!”, conta.

Uma das medidas que considera que deviam ser tomadas de imediato era a proibição da utilização de esferovite no mar. “Eu conheço bem o ministro do mar mas ele nunca me recebeu porque sabe que eu lhe vou dar na cabeça, não querem ouvir porque não se querem meter com os pescadores nem com a marinha mercante, com os que estão a poluir os oceanos. Já lhe mandei várias mensagens a perguntar porque é que não se proíbe a esferovite no mar”.

“A esferovite é uma das maiores pragas que existe no oceanos. 99,99% das pessoas nunca viram uma ilha de lixo no meio dos oceanos. Eu já vi. E a predominância de lixo nessas ilhas é a esferovite. Porque é que não se para com a esferovite nos oceanos? Porque não há coragem política. Isso passava por os pescadores não poderem usar boias de esferovite, por exemplo”, explica.

Esclarecendo que também não é contra a esferovite – “quando compramos eletrodomésticos, vêm embrulhados em esferovite, que é um isolante e protetor fantástico, não sou contra a esferovite” – diz que é contra, isso sim, o uso deste material como uma “boia barata” pelos pescadores.

“Os pescadores enrolam as esferovites com cabos e fazem daquilo uma boia para a pesca e depois fazem aparelhos de pesca, muitos dos quais ficam no mar até se perderem. Isto não é fiscalizado, usa-se tudo o que é barato e depois é material que se vai perder. Cada vez vemos mais material de pesca perdido nos oceanos, porque não há controlo e não é possível identificar de quem são esses aparelhos, é preciso apanhá-los em flagrante. Os políticos não se querem meter em guerras com os pescadores. Não há vontade política nem coragem para atacar o problema”, adianta.

Outra coisa com a qual não concorda é “a moda de pintar o chão das ruas. É em Cascais, é em Lisboa... Aquilo são plásticos que vão parar aos oceanos porque a tinta que ali está no chão se degrada rapidamente”.

Critica também a forma como se está a fazer a monitorização e contabilização do lixo: O que se está a fazer em Portugal e na Europa é contabilizar o lixo marinho por itens. Se apanharmos meia dúzia de beatas numa praia, isso contará mais do que uma rede com 500 quilos, vão ser seis itens contra um porque o que conta é o número de coisas que são apanhadas e não o seu tamanho. Isto é completamente ridículo”, atira.

“Eu apanhei um tubo no Cabo da Roca com 200 metros de comprimento e dois metros de diâmetro e oito centímetros de espessura que se calhar dava para fazer as palhinhas todas que alguma vez foram feitas em todo o mundo e isso só conta como um item. Se apanhássemos duas palhinhas, teria mais impacto do que um tubo de 200 metros, que era de uma piscicultura de Mira. Ainda lá está parte desse tubo, com cerca de 70 metros, consegui que a empresa proprietária, a Pescanova, viesse cá retirá-lo, tive de chamar a comunicação social”.

É uma forma de contabilizar lixo que não faz sentido, diz. “Quando uma pessoa está por dentro das coisas, dói ver isto. Mesmo quando vou a congressos e estou com ambientalistas, vejo que não sabem do que estão a falar e às vezes ficam mal comigo, porque desmascaro-os e pergunto-lhes quantas monitorizações fizeram de lixo marinho. Eu já fiz uma volta ao mundo, tenho 19 travessisas do Atlântico, ando por todo o lado à procura de lixo marinho e a perceber o que aparece em cada um destes locais”.

Relação com a câmara de Cascais “não é a melhor”

O dirigente da Cascaisea critica também o facto de haver uma dispersão de esforços. “Este sábado houve duas ações organizadas pela câmara municipal de Cascais com maré cheia. Uma no cabo Raso, em que o resultado foi quase nada, e outra, uma ação de mergulho na Baía de Cascais, onde também não apanharam nada. Eu sabia que eles não iam apanhar quase lixo nenhum. Eu conheço a Baía de Cascais como as palmas da minha mão e as pessoas ou conhecem ou não conhecem, estar a fazer por faz de conta não resulta. O facto de a maré estar cheia dificulta a recolha do lixo e foi por isso que a associação ambientalista optou por fazer a sua ação de limpeza a partir das 15h e não de manhã, como foram as outras. “Quem começou com as ações de limpeza da Baía de Cascais fui eu em 1981, quase fui preso porque trouxe lixo do mar para a terra. Antigamente eu era visto como um porco”, afirma.

Lamenta o facto de não haver “a humildade de falar com quem conhece Cascais”. A relação com este executivo da câmara municipal “não é a melhor”, afirma. “Até parece que comprometemos o trabalho deles. Com este executivo da câmara têm sido umas situações atrás das outras”.

“Chamo pessoas amigas para estas ações de limpeza, tento mobilizar cada vez mais gente. Uma coisa fantástica é que todas as pessoas que têm vindo a estas ações de limpeza ficam sensibilizadas e inscrevem-se para as outras ações, estão preocupados com o futuro dos filhos. Isso dá-me uma força enorme e uma grande vontade de trabalhar”, acrescenta.

Para a semana já tem planos: “vou para Sesimbra, vamos todos para dentro de água limpar. Em 2009 ganhei uma medalha de mérito pela defesa do ambiente no dia 10 de junho, mas eu não a mereço porque, tendo em conta aquilo que temos de fazer... eu ainda não fiz nada. Temos tanto, tanto para fazer. Encontrar muita gente interessada e a colaborar, isso para mim é a melhor coisa que me podem dar”.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: PLima@expresso.impresa.pt

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