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“Quando todos os dias são iguais há forçosamente um desentendimento com a vida”: o Expresso a bordo de um navio de resgate no Mediterrâneo

“Quando todos os dias são iguais há forçosamente um desentendimento com a vida”: o Expresso a bordo de um navio de resgate no Mediterrâneo

Cento e trinta e três pessoas, incluindo crianças, foram resgatadas no Mar Mediterrâneo este fim de semana, ao largo da Líbia: transportaram-nas depois para águas europeias mas acabaram empurradas de um lado para o outro sem que as tivessem deixado desembarcar - primeiro foi Lampedusa a negá-los, depois a Sicília, regressaram a Lampedusa para que fosse feito o desembarque de casos de emergência médica (só esses, os outros tiveram de ficar a bordo). Uma vez mais em direção à Sicília. Horas depois, afinal o destino seria Marselha. Não. Mais uma mudança: Arbatax, na Sardenha. Há 133 pessoas a quem lhes foi prometido um desembarque nas próximas horas. Está marcado: 25 de setembro, meio-dia. Reportagem do Expresso no Mediterrâneo, a bordo do Alan Kurdi, embarcação operada pela ONG alemã Sea Eye

“Quando todos os dias são iguais há forçosamente um desentendimento com a vida”: o Expresso a bordo de um navio de resgate no Mediterrâneo

Marta Gonçalves

a bordo do Alan Kurdi

- Podes dar-me água?
- Tens de esperar.
- Tens alguma coisa para comer?
- Tens de esperar.
- Arranjas-me uma pasta de dentes?
- Tens de esperar.
- Posso ir tomar um banho?
- Tens de esperar.
- Há algum casaco quente que me possas dar?
- Tens de esperar.

Esperar. Esperar. Esperar. Esperar. "Tens de esperar": é a resposta-padrão para as perguntas de quem foi resgatado do mar e ainda não sabe onde será terra.

O entusiasmo da manhã foi esmorecendo, desaparecendo aos poucos assim que os minutos passaram a horas. A pouco mais de 200 metros de terra e ninguém os deixava sair. "When?", pergunta Aazmi com os olhos fixados na ilha da Sardenha, que o Alan Kurdi alcançou na manhã desta quinta-feira. "When?", insistiu ele, e depois voltou a fixar os olhos na vila que tem à frente e que se chama Arbatax. Não há mais nenhuma resposta para de lhe dar que seja diferente daquela que já foi dada centenas de vezes a cada uma das 133 pessoas a bordo do navio de salvamento e resgate. "Tens de esperar." Aazmi tem 46 anos, está com os quatro filhos (entre os sete e 14 anos) e a mulher Binas à espera.

O desassossego começa ainda o sol não apareceu. Aos poucos acordam, enrolam-se no cobertor - os dias estão cada vez mais frios e as madrugadas cada vez mais dolorosas - e olham apenas para o horizonte. Ao contrário do que aconteceu nos últimos tempos há terra à vista. "O que é aquilo? Que lugar é aquele? Aquilo não é França, ontem [quarta-feira] disseram-nos que íamos demorar uns quatro dias a chegar a França." Fatim tem 29 anos, fugiu do Burkina Faso sozinha e é a única entre as mulheres que está à vontade com o Inglês. "Para onde nos vão levar? Vamos ficar em Itália?" Apesar de saberem que não é fácil desembarcar devido às recentes decisões das autoridades italianas, quase todos querem ir para Itália. Se não for possível, então a escolha é a Alemanha.

"É Itália, não é?", insiste Fatim. "Tens de esperar." Discretamente, Hamza - líbio de 32 anos - aproxima-se e segredou. "É a Sardenha." Não perguntou, apenas afirmou. "Talvez seja." E outra vez: "Tens de esperar". Mas sim, era a Sardenha, era para lá que se navegava. E talvez o desembarque fosse lá.

As explicações começaram a surgir com o desenvolvimento do dia: primeiro que o navio apenas se iria abrigar por causa do mau tempo; depois, mais tarde, a certeza de que ainda era preciso navegar para norte 12 horas em direção ao principal porto da Sardenha, onde as autoridades italianas deixavam a certeza de que o desembarque vai acontecer esta sexta-feira.

Está marcado: 25 de setembro, meio-dia.

Tudo foi explicado em inglês, francês e árabe. Houve palmas contidas. Os gritos de alegria tiveram de ser arrancados pelos voluntários porque todos têm medo. Desde o último sábado, quando as 133 pessoas foram resgatadas em águas internacionais ao largo da Líbia, o rumo mudou demasiadas vezes: Lampedusa, depois Sicília, um regresso a Lampedusa para desembarcar dois casos de emergência médica e uma vez mais em direção à Sicília. Marselha, em França, chegou a ser apresentada como solução. Agora, Sardenha. Primeiro o porto de Arbatax, no sul da ilha, depois Ólbia (mais a norte e a principal cidade).

"Preciso que me digas uma coisa: o que nos vai acontecer quando sairmos do navio?" A pergunta do Ose surgiu já no final de uma conversa que durou mais de uma hora. Nigeriano de 22 anos, trouxe a mulher e a filha de um ano pela rota mais mortal do mundo. "Temos de esperar." Desta vez a resposta do costume foi no plural porque a verdade é que ninguém sabe realmente o que lhes vai acontecer. Nunca antes um navio de salvamento e resgate operado por uma organização não-governamental desembarcou na Sardenha.

Quase uma semana depois do resgate - aguardar sete dias pela atribuição de um porto seguro neste momento é considerado pouco tempo -, o acordar desta sexta-feira vai ser diferente. Até agora, os despertadores tocavam para avisar os muçulmanos de que era hora da primeira oração do dia, os restantes deixavam-se ficar até que o sol os acordasse. Fila para a casa de banho. Encher a garrafa de água, usá-la para lavar dentes e cara. Esperar pelo chá. Depois, uma refeição quente. Lavam os pratos. Esperam: uns encostam-se e deixam-se dormitar pelo dia, outros conversam. Os mais novos correm por todo o navio, já fizeram amigos nos dois conveses. Meio da tarde: um copo de sumo e uma barrinha de cereais. Esperam. Conversam. Esperam. Final do dia: o jantar. Mais uma refeição quente. Lavam os pratos. É noite: pegam nos cobertores e vão para o lugar que do chão fizeram cama. Dormem. Tudo se volta a repetir.

Esperam. Nunca se queixam. "Quando todos os dias são iguais há forçosamente um desentendimento com a vida." (in "Os meus sentimentos", Dulce Maria Cardoso).

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: mpgoncalves@expresso.impresa.pt

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