Cerca de 40% dos cidadãos portugueses que reportaram ter tido consultas canceladas durante o estado de emergência já tinham a saúde fragilizada de alguma forma. A conclusão é de um inquérito a nível europeu levado a cabo pelo Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT) da Universidade de Coimbra.
Desses 40% de pessoas que autoavaliaram a sua saúde como inferior a “boa”, e onde se incluem aqueles que são doentes crónicos, 14% admitem mesmo que o seu estado de saúde piorou durante o período do confinamento - sobretudo entre 15 de abril e 15 de maio - em relação ao mesmo período do ano passado. Se Portugal for retirado da equação, as percentagens são bem menores: só 25% dos cidadãos europeus doentes é que pensam ter sido afetados pelo cancelamento de consultas, e apenas 9% diz ter visto a sua saúde piorar naqueles mesmos 30 dias.
Já no que diz respeito àqueles que não tinham consultas marcadas, 81% dos inquiridos portugueses diz que a sua saúde se manteve igual durante os dias mais cerrados da pandemia, uma percentagem próxima da europeia.
Para Cláudia Costa, uma das investigadoras responsáveis pelo inquérito, estes resultados são “expectáveis”. “Durante o confinamento o ministério focou-se, e bem, na covid-19, mas isso traduziu-se num abandono dos outros doentes, sobretudo os doentes crónicos”, diz ao Expresso esta especialista em geografia da saúde. A isto juntam-se os “graves problemas” do país no acesso e utilização dos cuidados de saúde primários (centros de saúde), bem como a “baixa literacia em saúde” - também por a população ser bastante envelhecida.
Segundo o Portal de Transparência do SNS, só em julho os centros de saúde nacionais realizaram menos 940 mil consultas em comparação com o mesmo mês do ano passado. No total dos últimos três meses (julho, junho e maio), foram feitas menos 2,7 milhões de consultas, uma queda de 53% em relação ao mesmo período de 2019.
Cláudia Costa relaciona estes elementos com outra conclusão do inquérito: apenas 7% dos portugueses reportou ter tido uma consulta por telefone. Nos restantes países essa percentagem salta, em média, para os 20%. Em comparação com 2019, nos últimos três meses o números de consultas não presenciais disparou 110% nos centros de saúde - mais de 2,6 milhões de contactos. No entanto, Rui Nogueira, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral, lembra ao Expresso que "a maioria das pessoas não considera um telefonema uma consulta." "E, para mim, a consulta também pressupõe a presença do doente", acrescenta.
Além das consultas, o inquérito foca-se em outros três indicadores: cirurgias, exames e tratamentos. Por exemplo, 53% dos inquiridos disse que tinha tido um tratamento cancelado no SNS. Nas contas europeias, esta percentagem foi de apenas 19%.
Em todos os indicadores os portugueses reportaram mais cancelamentos do que os cidadãos europeus - o que não significa que isso tenha acontecido de facto, pois a contabilização das respostas dadas não substitui os números oficiais. O estudo ainda está a decorrer e tem recolhido dados de 30 países, praticamente todos na Europa. A amostra para o período entre 15 de abril e 15 de maio é de 1568 pessoas em Portugal e 1068 na Europa, 2636 no total. Em território nacional, foram auscultadas pessoas que residiam em áreas urbanas e também rurais.
Inverno: unidades ambulatórias preparadas, centros de saúde ainda não
Sobre estes utentes com condições pré-existentes que viram o acesso a cuidados de saúde dificultado devido à pandemia, Rui Nogueira concorda que “a vigilância de doenças crónicas está a recuperar devagar”. O clínico sublinha que os centros de saúde “ainda não conseguiram resolver o atraso que tiveram” nos serviços durante o estado de emergência, o que é explicado em parte pelas “limitações” necessárias atualmente, como a entrada de um utente de cada vez e a “não acumulação de pessoas nas salas de espera, normalmente pequenas”.
Por isso, o clínico defende um reforço urgente dos meios dos cuidados primários. “Quanto mais nos focarmos nos centros de saúde, menos os hospitais irão ficar sobrecarregados numa eventual segunda vaga durante o inverno”, alerta o médico, que também defende o uso de máscara na rua. "O reforço de meios e recursos humanos nos centros de saúde é essencial para o SNS se proteger do inverno e voltar a assegurar a monitorização de doentes", reforça Cláudia Costa.
O que também será importante para proteger as urgências dos hospitais no inverno serão as unidades de cirurgia de ambulatório, diz Carlos Magalhães, diretor do Serviço de Cirurgia Geral de Ambulatório do Centro Hospitalar do Porto. “A retoma começou no final de maio, início de junho, com algumas restrições, normais dadas as medidas de segurança da DGS. Por exemplo, as unidades passaram a trabalhar só com três pessoas”, explica o também presidente da Associação Portuguesa de Cirurgia Ambulatória (APCA).
“Neste momento, os serviços de ambulatório estão quase a funcionar normalmente. O CH do Porto está a mais de 90%, e mesmo as consultas [de ambulatório], apesar de estarem a ser mais espaçadas, estão a 80%, 90% em quase todo o país”, sublinha. “Em agosto houve a redução sazonal normal, mas para a semana já vamos voltar”. Quando isso acontecer, diz Carlos Magalhães, “as unidades de ambulatório vão estar preparadas para funcionar como uma via de escape dos hospitais”, incluindo para receber outros pacientes para assim “libertar camas e vagas para doentes com gripe ou sintomas de covid-19”, garante o médico.