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O “trilho” doloroso que conduz ao suicídio: “querer tudo e o seu contrário”

O “trilho” doloroso que conduz ao suicídio: “querer tudo e o seu contrário”
Getty Images

Para o psiquiatra Carlos Braz Saraiva, é importante saber mais sobre saúde mental, para aprender a reconhecer doenças como a depressão. "As pessoas não falam necessariamente" sobre o seu sofrimento. Há outros sinais. "Subtilezas"

O “trilho” doloroso que conduz ao suicídio: “querer tudo e o seu contrário”

Mafalda Ganhão

Jornalista

É normal que se fique surpreendido com o suicídio de alguém que, aparentemente, não dava sinais de estar em sofrimento ou em depressão, mas o fenómeno “é mais comum do que tendemos a considerar”. É o médico psiquiatra Carlos Braz Saraiva que o afirma, lembrando, em entrevista ao Expresso, que “o suicídio é o espectro final do desespero” e que “as manifestações de sofrimento obedecem a diferentes parâmetros, conforme as personalidades” que estão em causa.

Dito isto, as pessoas não expressam necessariamente esse sofrimento, no sentido em que podem “não falar” dele, explica o psiquiatra, com muito do sofrimento a ter “um conteúdo simbólico e metafórico”.

Para Carlos Braz Saraiva, isto é tanto mais assim quando se trata de “personalidades mais elaboradas, do ponto de vista intelectual ou conceptual, como acontece muito no mundo das artes”. Aos olhos dos mais próximos, restam as “subtilezas” para descortinar o mal-estar interior escondido no outro, pequenas nesgas que deixam escapar o seu lado mais sombrio.

“Uma das mais importantes é o que é observável”, ou seja, “o comportamento”, continua o médico, que descreve as pessoas mais deprimidas como “alguém muito fechado no seu diálogo interno, com pensamentos automáticos negativos”, que são como “ruminações sobre a desesperança, a inutilidade ou o fracasso”. É como ficar “mergulhado numa nuvem negra, da qual não se consegue sair”, muitas vezes, infelizmente, nem sequer “para pedir ajuda”, acrescenta.

Por outro lado, “todo o sofrimento deve ser legitimado e validado”, mesmo que manifestado “com um discurso de tipo infantil e pueril”, quase a parecer brincadeira, sublinha o também professor universitário. Se está a ser manifestado, “devemos tentar perceber o que está para além disso”.

Os especialistas sabem-no bem, afirma Braz Saraiva, para quem “a arte de navegar no não dito é uma competência que está para além dos aspetos científicos”, requerendo destrezas “comunicacionais”, para se alcançar o mais subterrâneo.

Quando se fala do suicídio – e a principal doença mental que a ele conduz é a chamada depressão major - há que não confundir os “acontecimentos precipitantes” com aquilo a que o psiquiatra se refere como “o processo suicida”.

Este processso é como “um trilho” doloroso. Os doentes com ideação suicida “estão a sofrer e hesitantes em relação ao que poderão ou não fazer”. Perdem-se nesse labirinto da ambivalência, continua o psiquiatra, onde “querem tudo e o seu contrário”, “o viver e o morrer”.

O mundo a preto e branco

Face a possíveis traumas e episódios negativos que é comum reemergirem neste processo, e “estando a capacidade de relativização e de desdramatização prejudicada” – como também já escreveu Carlos Braz Saraiva num artigo sobre o tema – “o sofrimento adquire a força de uma dor psicológica intensa”.

O médico fala também num “efeito lupa”, que aumenta o que já é entendido como negativo. Uma vez mais, “o pensamento dicotómico, através da visão do mundo a preto ou branco”, impede uma visão de equilíbrio e potencia comportamentos de extrema rigidez.

O risco suicida aumenta, conclui o psiquiatra, se a isto se associarem “certos sintomas mediados pelo temperamento, como a impulsividade ou as perturbações da identidade, ou outros mais circunstanciais, exemplificados no consumo de substâncias e álcool”.

Incontornável perguntar, a propósito da morte do ator Pedro Lima, se a exposição pública, as vidas vividas sob escrutínio e tantas vezes apresentadas como quase perfeitas e idílicas, não se podem voltar contra os próprios, criando-lhes a ‘obrigação’ de manterem essa visão, escondendo as suas fragilidades.

Cada caso é um caso, não deixa de ir lembrando o psiquiatra de Coimbra, admitindo que, de um modo geral, a fama pode trazer essa dificuldade. “A projeção para patamares quase mágicos, em que é difícil destrinçar o que é real e o que não o é, pode ter esse lado, trazendo dificuldades em lidar com as amarguras, como se tivessem de ser poderosas e à prova de fragilidades”.

Que vulnerabilidades individuais empurram alguns para este calvário sem retorno, muitas vezes sem procurar ajuda, mesmo com episódios recorrentes de depressão? “Para a depressão major importam fatores biológicos, sociodemográficos e psicossociais”. Entre os sociodemográficos, em Portugal, há a considerar ser homem e ter acima dos 50 anos ou ser idoso; enquanto nos fatores psicossociais se destacam “o desemprego, não religiosidade, doença crónica dolorosa e incapacitante, perda de estatuto social e outros acontecimentos de vida negativos”.

Trata-se de uma doença conhecida e estudada. Quanto mais precoce for o seu diagnóstico, mais cedo se poderá intervir, lembra o médico, que insiste na necessidade de se incrementar a literacia em saúde mental, para que todos aprendam a reconhecê-la melhor e estar atentos. E deixa um alerta: Do ponto de vista da comunicação destas mortes, “o caminho não é o sensacionalismo”, que contribui para a sua quase “glorificação” e potencia o efeito de mimetismo.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: MGanhao@expresso.impresa.pt

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