Depois de o Governo ter excluído pessoas com diabetes e com hipertensão do regime excecional de proteção laboral criado no contexto da pandemia de covid-19, que previa a justificação de faltas ao trabalho nos casos em que este não pudesse ser feito à distância, o secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales, esclareceu, na conferência de imprensa desta quarta-feira, que pessoas em “situação de descompensação” podem continuar a beneficiar desse regime.
“Todos os diabéticos e hipertensos em situação de descompensação e devidamente validados pelo seu médico estarão sob o chapéu da doença crónica”, foram essas as suas palavras, querendo com isso dizer que podem continuar a ter as suas faltas justificadas. No entanto, tanto a decisão de excluir estas pessoas como a justificação do secretário de Estado da Saúde desagradaram à Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal, que acusou o Governo de “discriminação”.
Em entrevista ao Expresso, o presidente da associação, José Manuel Boavida, refere que “nenhum dos argumentos” apresentados pelo secretário de Estado da Saúde serve verdadeiramente para justificar esta decisão. “Encontrar argumentos para isto é um exercício absolutamente artificial”, afirma, acrescentando “não haver qualquer razão sanitária ou norma internacional” para excluir diabéticos e pessoas que sofrem de hipertensão do regime excecional de proteção laboral. “São duas doenças que podem ter um impacto muito grande na sociedade portuguesa”.
Em conferência de imprensa, António Lacerda Sales afirmou que “quer diabéticos, quer hipertensos, são de facto fatores de risco para doenças crónicas: a hipertensão para doença cardiovascular e a diabetes para doença cardiovascular e renal”, mas que “são doentes essencialmente compensados”. O “facto de estarem compensados não significa, porém, que a qualquer momento não possam vir a descompensar e sempre que isso acontecer”, disse também o responsável, “essa situação estará com certeza coberta pelo chapéu das doenças crónicas”.
Discurso do Governo é “irresponsável”
José Manuel Boavida não concorda, contudo, com a categorização feita, e referiu, numa nota enviada ao Expresso, antes mesmo da entrevista, “que, para além de contraditória com toda a doutrina oficial do próprio Ministério da Saúde”, esta distinção “também contradiz as orientações internacionais”. Quer a diabetes quer a hipertensão, acrescentou, “são realmente doenças específicas que podem desenvolver aquelas complicações ou outras, como são as lesões que conduzem à cegueira ou às amputações”. “Dizer que só são doenças quando estão descompensadas é quase um convite a quem quisesse uma justificação para o trabalho deixasse por momentos a medicação”, referiu, considerando o discurso do Governo “irresponsável”. “Descompensado não é uma doença crónica, é uma doença aguda”, referiu também.
Quanto ao argumento apresentado pelo secretário de Estado da Saúde de que, apesar de serem fatores de risco, tanto a diabetes como a hipertensão “não estão associadas a uma maior taxa de infeção pelo novo coronavírus”, o presidente da associação tem dificuldades em considerar isso sequer um argumento. A existir algum critério, afirma já em entrevista. “A inexistência de maior risco de infeção aplica-se a qualquer grupo de doenças. O risco não é determinado pelas pessoas, é determinado pela exposição”, diz.
A proposta da associação a que preside é a de “chegar a uma formulação mais geral” do artigo do referido decreto que diz respeito ao regime excecional de proteção de imunodeprimidos e doentes crónicos, escrevendo-se “todas as doenças crónicas, porque as agudas têm obviamente direito a baixa médica”, cabendo aos médicos “determinar ou não a necessidade de justificação para dispensa do trabalho”. “Não faz sentido algum entrar numa discussão para colocar umas doenças contra as outras”, conclui o presidente, segundo o qual são diagnosticadas por dia, em média, 200 pessoas com diabetes, o que equivale a “70 mil por ano”. Outro dado que acrescenta: também todos os dias, são internadas em média 500 pessoas com diabetes.
Sociedade Portuguesa de Diabetologia acusa Governo de “exclusão propositada”
A 1 de maio, foi publicado em Diário da República um decreto lei (20/2020) que prevê a criação de um regime excecional de proteção para imunodeprimidos e doentes crónicos, em que estavam incluídas as pessoas com diabetes e hipertensão, bem como “portadores de doença respiratória crónica, doentes oncológicos e portadores de insuficiência renal”, por serem considerados grupos de risco na infeção pelo novo vírus. De acordo com o decreto, estas pessoas “podem justificar a falta ao trabalho mediante declaração médica, desde que não possam desempenhar a sua atividade em regime de teletrabalho ou através de outras formas de proteção de atividade”. Dias depois (na quarta-feira, aliás), o artigo viria a ser retificado, tendo sido excluída a referência aos diabéticos e hipertensos.
A Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal não foi a única a manifestar o seu desagrado. Também a Sociedade Portuguesa de Diabetologia (SPD) disse-se, em comunicado enviado aos meios de comunicação, “negativamente surpreendida” com aquilo que considera ter sido uma “exclusão propositada” dos diabéticos e hipertensos. O presidente da SPD, João Filipe Raposo, alertou para o facto de estas pessoas se encontrarem numa situação de “vulnerabilidade ainda maior”.
Além de “propositada”, a exclusão foi uma “surpresa”, referiu ainda o presidente, dizendo “não entender a intenção do Governo”, ainda para mais quando “vários elementos do próprio Governo têm feito múltiplas menções aos riscos acrescidos dos diabéticos perante a covid-19”. Representando a “diabetes um sério problema de saúde pública em Portugal, com mais de um milhão de pessoas a viver com a doença, das quais mais de 40% não está diagnosticada”, tal exclusão era “desnecessária, uma vez que deixa estas pessoas numa situação de vulnerabilidade ainda maior”, disse ainda João Filipe Raposo.
Da parte da Sociedade Portuguesa de Hipertensão (SPH), a mensagem é semelhante. Em declarações à Lusa, o presidente, Vítor Paixão Dias, afirmou que “uma percentagem muito elevada” das pessoas infetadas com covid-19 e com complicações da doença “era hipertensa ou diabética” e que, por isso, lhe parece uma “má solução” excluir todos do referido regime de proteção especial. A decisão do Governo, disse ainda, revela um “mau princípio” e poderá ter sido tomada, sugeriu, “numa perspetiva orçamental, porque há muitos hipertensos e diabéticos”.