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Coronavírus. Em busca do 'paciente zero'

Coronavírus. Em busca do 'paciente zero'
STR/Getty Images

Com a análise genética, é possível reconstituir a progressão de um vírus ao longo do tempo. Mas nem sempre se chega ao primeiro doente, e isso pode não ser o mais importante

Luís M. Faria

Jornalista

A epidemia do Covid-19 trouxe de volta uma expressão que se ouvia com frequência durante a epidemia da SIDA no século passado: “paciente zero”. A expressão referia-se à pessoa que teria sido a primeira a ser infetada pelo vírus HIV e a transmiti-lo a outras, que por sua vez o teriam transmitido a outras, e por aí fora.

No que toca ao novo coronavírus, na realidade, há pelo menos dois pacientes zero dos quais se anda agora à procura. Um é o primeiro infetado na China, que poderá ser extremamente difícil de descobrir, até por não haver consenso sobre o momento em que a epidemia começou: as autoridades dizem que foi no fim de dezembro, mas um estudo publicado no “Lancet” refere o início desse mês.

Outro paciente zero de que se anda à procura é uma pessoa que terá iniciado a expansão do vírus para países como a Coreia do Sul, a Malásia, Espanha, França e Reino Unido. As pistas centram-se num hotel de luxo em Singapura. Entre 22 e 24 de janeiro, o hotel recebeu um encontro internacional da Servomex, uma empresa britânica de contadores de gás. Entres mais de cem presentes incluíam-se pessoas de diversas partes do mundo e muitas delas terão sido portadoras do vírus quando partiram. Um dos participantes era um homem de negócios chamado Steve Walsh, que a caminho de casa fez umas pequenas férias num resort de ski nos Alpes, infectando onze pessoas que ficaram instaladas no mesmo chalêt.

Ainda não se conseguiu determinar quem foi o participante no encontro de Singapura que levou para lá o vírus. Aliás, nem sequer se sabe se foi um membro da empresa ou um funcionário do hotel, ou qualquer outra pessoa que estivesse a assistir. Descobrir isso é importante, não só para compreender o percurso que o vírus seguiu até lá, como para impedir que continue a gerar novas linhas de infetados. Afinal, é bem possível que a pessoa em questão nem sequer saiba que está infetada.

Um vírus vai sofrendo alterações à medida que se transmite de animais para humanos e depois entre estes. As alterações têm ritmos conhecidos, o que permite, recorrendo à análise genética, obter uma ideia do percurso seguido. Com base nesses dados, pode-se recuar no tempo e tentar chegar à origem última.

Portadora, mas não doente

Mesmo antes de existirem essas ferramentas científicas, já se fazia trabalho de reconstrução. O primeiro caso famoso de um paciente zero (que na altura ainda não se chamava assim, pois a expressão ainda não existia) terá sido o de Mary Mallon, uma irlandesa que emigrou para os Estados Unidos em 1883.

Nos anos iniciais do século XX, uma epidemia de febre tifóide em zonas próximas de Nova Iorque e em Manhattan alarmou as autoridades americanas. Um investigador descobriu que muitas das pessoas infetadas vinham de sete casas onde Mallon havia trabalhado como cozinheira. O investigador foi falar com Mary e pediu-lhe amostras de sangue e urina. Mallon recusou, achando a ideia toda um disparate, até porque não tinha sintomas da doença.

Com a colaboração da polícia, Mallon acabou por ser levada à força para um hospital, onde os exames confirmaram as suspeitas. Ela era uma daquelas pessoas que transmitem o vírus da doença, mas não apresentam praticamente sintomas. Ainda ficou internada durante algum tempo, mas ao fim de três anos acabou por conseguir que a libertassem, contra a promessa de não voltar a trabalhar como cozinheira.

Algum tempo depois, porém, houve novos surtos da epidemia, e descobriu-se que Mallon voltara a trabalhar como cozinheira numa maternidade, entre outros lugares. Aí não havia outro remédio senão interná-la até ao fim da vida, pois tinha desrespeitado o seu compromisso, pondo deliberadamente em risco a saúde pública.

A expressão nasceu de um equívoco

O exemplo mais notório de um paciente zero terá sido o do homem que deu origem ao termo. Quando da epidemia de SIDA nos anos 1980 - ou melhor, da percepção e do alarme, pois vir-se-ia a saber que o vírus andava a infetar humanos há muito tempo - foi feito um estudo sobre dezenas de homens gay na zona de Los Angeles, a quem se perguntou que parceiros sexuais tinham tido.

Um nome começou a aparecer com frequência: Gaetan Dugas, um hospedeiro de bordo canadiano que tinha tido um grande número de parceiros diferentes. O macabro da história é que Dugas, sabendo que estava gravemente doente, teria intensificado os seus contactos sexuais. No fim, dizia aos parceiros que tinha 'cancro gay' e que a partir daí eles também teriam.

O termo 'paciente 0' começou como um equívoco. No estudo, Dugas era designado não por esse algarismo mas pela letra 'O', significando um doente de fora da Califórnia ('out of California') Mais tarde, porém, concluiu-se que o HIV tinha chegado aos Estados Unidos em 1969 por via do Haiti, que por sua vez o recebera de África.

O longo trabalho de reconstrução do percurso determinou que o vírus tinha passado dos animais para o homem em África, no início do século XX. Ou seja, permanecera indetetado durante muitas décadas. Numa dúzia de versões diferentes - transmitidas por macacos, cimpanzés e gorilas - uma única seria responsável por milhões de vítimas humanas.

Uma série de epidemias

Tal como o HIV e a generalidade dos vírus, o Covid-19 também tem origem animal. Atualmente, as especulações mais credíveis passam por cobras e morcegos. Fezes destes últimos poderão tê-lo transmitido a um animal terrestre, talvez o pangolim, e daí para outros animais. Entre estes, algum ou alguns que se vendiam no mercado de Wuhan, tido como o epicentro da epidemia em curso.

Em alguns vírus anteriores, foi possível chegar a um paciente zero. A epidemia de ébola que matou 11 mil pessoas na Guiné e noutros países africanos entre 2014 e 2016 começou com uma criança de dois anos que costumava brincar numa árvore oca onde havia uma colónia de morcegos. A epidemia de SARS em 2003 teve origem num médico de 64 anos em Hong-Kong.

No caso de Covid-19, talvez não venha a ser possível encontrar o primeiro doente de todos, mas isso também poderá não ser muito importante, ou sequer desejável, até pelo risco de se vir a mostrar enganador. Oficialmente, ainda não existe uma pandemia mas uma série de epidemias à volta do mundo. Será mais relevante, no imediato, procurar o doente zero em cada uma delas.

Em Itália, por exemplo, isso parece já ter acontecido. O “El Mundo” diz agora que o doente zero de Covid-19 no país é um homem de 38 anos e está a receber um cocktail de medicamentos onde consta um que é normalmente usado para tratar o HIV.

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