Morreu Vasco Pulido Valente
Tinha 78 anos. Era um dos mais conhecidos, polémicos e respeitados cronistas da imprensa portuguesa
Tinha 78 anos. Era um dos mais conhecidos, polémicos e respeitados cronistas da imprensa portuguesa
Escritor, ensaísta e historiador, morreu esta sexta-feira, aos 78 anos, Vasco Pulido Valente, noticiou o “Público”. Pulido Valente estava internado numa unidade hospitalar de Lisboa.
Vasco Valente Correia Guedes, o seu verdadeiro nome, nasceu em Lisboa a 21 de novembro de 1941. Nascido no seio de uma família empenhada na luta contra o Estado Novo, cedo se habituou a ver a casa onde vivia transformada num corredor de passagem de muitos opositores do regime. Os pais — Maria Helena Pulido Valente e Júlio Correia Guedes — eram próximos de alguns dos mais influentes dirigentes comunistas da época, como Octávio Pato e Cândida Ventura.
A mãe, como recordava ao Expresso nesta longa entrevista de vida, levava ao médico os filhos destas pessoas que acolhiam em casa. Como era filha de Francisco Pulido Valente, médico, professor catedrático e intelectual respeitado, tinha entrada direta nos hospitais sem que lhe fizessem perguntas e, melhor, sem que se levantassem suspeitas. O pai, engenheiro químico e diretor numa empresa internacional, fazia transferências financeiras para quem, na clandestinidade, ia travando a luta contra o regime.
É nessa altura que conhece Mário Soares, de quem seria apoiante na primeira candidatura presidencial, em 1986. “Conheci-o quando tinha quatro anos. Uma das memórias mais antigas que eu tenho, é da cara dele a rir-se e a cara do meu tio [Fernando Pulido Valente] ao lado dele tétrica. E eu gostava do dr. Soares e não gostava do meu tio, claro [risos]. O dr. Mário Soares era amigo dos meus pais. O meu pai trabalhava no Norte e tinha uma casa por onde passavam os oposicionistas. Era uma casa grande, com vários quartos. Depois a empresa mudou-se cá para baixo. E eu lembro-me perfeitamente do dr. Mário Soares a almoçar lá em casa”, recordou numa entrevista de 2018 ao jornal “Público”.
Nunca escondeu a admiração por Mário Soares. "Eu não era amigo do dr. Soares. O dr. Soares fazia o favor de gostar de mim... às vezes. Às vezes gostava de mim", disse, na já citada entrevista ao "Público". "É a grande figura da História Portuguesa Moderna [desde as invasões francesas]. Parágrafo. Foi ele que fez a democracia portuguesa", sentenciou.
Filho de uma educação privilegiada — estudou na St. Julian's School, em Carcavelos, no Liceu Camões — de onde acabaria expulso por mau comportamento — e no Pedro Nunes, em Lisboa, antes de viajar por vários colégios internos — a aproximação aos movimentos estudantis conotados com a esquerda radical foram um passo natural. Fez parte do MAR - Movimento de Acção Revolucionária, liderado por Jorge Sampaio e com outras figuras como Medeiros Ferreira, Vítor Wengorovius, Manuel de Lucena, João Cravinho, Nuno Brederode dos Santos.
A adolescência foi “particularmente difícil”, como chegou a assumir . “As adolescências são todas difíceis. Eu tive uma adolescência particularmente difícil porque tinha muitos conflitos com a minha mãe. E acabei por ir para colégios internos, um que era quase um presídio, que era o Colégio Nuno Álvares, em Tomar”, revelou nessa mesma entrevista ao jornal “Público”. Acabaria por concluir o então 7º ano no Colégio Moderno, precisamente dirigido por Mário Soares.
Estudou Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e participou, no início dos anos 1960, nas lutas académicas contra o regime do Estado Novo. Integrou o Movimento de Acção Revolucionária, liderado por Jorge Sampaio, ex-Presidente da República, e envolveu-se, posteriormente, no grupo O Tempo e o Modo onde participavam Alçada Baptista e João Bénard da Costa. Desde o final dos anos 1950 colaborou em diversas revistas e jornais, desde a Quadrante, da associação académica de da Faculdade de Direito de Lisboa, à Almanaque.
“O Tempo e o Modo”, que também acolhia republicanos laicos (como Mário Soares), membros do MAR e estudantes que tinham vivido a crise universitária do ano anterior, acabaria por ser decisivo na vida de Vasco Pulido Valente, que se tornou, ainda jovem, um dos nomes mais respeitados da edição da revista. Sobre ela, Pulido Valente chegou a dizer: “O regime e o PC, ou os seus companheiros de caminho, dominavam e fiscalizavam a opinião pública e a produção académica, ensaística e cultural que se publicava. ‘O Tempo e o Modo’ recebeu e promoveu muitas vítimas deste arranjo. A censura e o PC, pelo menos, achavam-nos à altura merecedores da sua execração”.
Com o apoio de uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, doutorou-se em História na Universidade de Oxford, em Inglaterra, no início dos anos 1970, defendendo uma tese intitulada “O Poder e o Povo: a revolução de 1910”. De regresso a Portugal, foi docente no Instituto Superior de Economia, no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica.
Apesar da admiração por Mário Soares, a verdade é que o final da década 70 marca o afastamento de Vasco Pulido Valente em relação ao PS. Henrique Raposo, que dedicou um longo ensaio ao historiador e cronista, explica a rutura entre os dois com a desilusão de Pulido Valente com a forma como Mário Soares se mostrava “incapaz” de criar um “Estado independente dos caciques”. e uma esquerda com “um mínimo de responsabilidade financeira”.
Como desprezava com idêntico fervor o “radicalismo esquerdista”, continuava Henrique Raposo, mas também a “velha direita reacionária”, o apoio a Francisco Sá Carneiro foi um movimento coerente. Mas que lhe custou, naturalmente, críticas. “Quando fui para o Governo de Sá Carneiro, amigos meus encontravam-me na rua e chamavam-me fascista. E também me chamavam fascista nos jornais. Foram anos e anos”, assumiu ao Público.
Num artigo publicado há um mês no livro “Linhas Direitas”, organizado por Rui Ramos e Miguel Morgado, Pulido Valente fala desse tempo, de como manteve em sempre casa um retrato com Sá Carneiro em casa, tirado a 5 de julho de 1979, no dia em que PSD assinou o acordo da Aliança Democrática (AD), com o CDS de Freitas do Amaral e o Partido Popular Monárquico (PPM), de Gonçalo Ribeiro Telles. Um ano antes começara a trabalhar com o fundador do PSD, em vésperas da dissidência do grupo das ‘Opções Inadiáveis’ — “a parte que se dizia social-democrata e rejeitava com alarido a insinuação de que pertencia à direita”, descreve Pulido Valente. “O manifesto dos ‘Inadiáveis’ pretendia reorientar o partido para a esquerda, uma doença depois recorrente no PSD que Sá Carneiro precisava de eliminar”.
Em 1980, com a vitória da AD, integrou o governo de Francisco Sá Carneiro com as funções de secretário de Estado da Cultura. Nunca escondeu o fascínio pelo legado do ex-primeiro-ministro. Disse-o ao Diário de Notícias. "O Sá Carneiro não era um ideólogo, antes um grande político, que percebeu - nisso concordámos os dois - que era preciso para a sobrevivência do país que a direita pudesse governar".
Também por isso a morte de Sá Carneiro, em Camarate, foi a segunda derrota política de Pulido Valente, nota Raposo. Se não conseguira emancipar a esquerda da vulgata marxista, também não conseguiu emancipar a direita.
Em 1995, após a retirada de Cavaco Silva da liderança do PSD e do governo, de quem foi um duro crítico, o historiador foi eleito deputado pelas lista sociais-democratas, sob a liderança de Fernando Nogueira. A experiência durou escassos quatro meses: quando Nogueira se demitiu da presidência do PSD, Pulido Valente abandonou as suas funções na Assembleia da República, confessando-se desiludido com a vida parlamentar.
Era investigador coordenador aposentado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e autor de diversas obras de história, quer sobre o período do século XIX, como sobre a primeira República, de que se destacam “Os Devoristas”, “Glória” e “O Poder e o Povo”, que foi alvo de uma edição quando do centenário da revolução de 5 de outubro de 1910 que derrubou o regime monárquico.
Além dos comentários e análises que foi publicando regularmente em jornais como o “Expresso”, “O Tempo”, “O Independente”, “Diário de Notícias”, “Público” e “Observador”, Vasco Pulido Valente teve, igualmente, atividade política.
No cinema, foi coargumentista dos filmes “O Cerco”, de António da Cunha Telles, de 1970, “Aqui d'El Rei!”, de António Pedro Vasconcelos, de 1992, tendo escrito o argumento de “O Delfim”, de Fernando Lopes, de 2002.
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