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Celso Cunha e um alerta sobre o coronavírus: As doenças longínquas chegam cá, como as nossas chegam a outros sítios

Celso Cunha e um alerta sobre o coronavírus: As doenças longínquas chegam cá, como as nossas chegam a outros sítios
Kevin Frayer/Getty Images

Celso Cunha, do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, diz que em Portugal o risco do novo coronavírus é considerado baixo. Mas lembra situações em que outros vírus provocaram mortalidade em massa no mundo

Luís M. Faria

Jornalista

Já são quase duas dezenas as vítimas mortais confirmadas do novo coronavírus detetado em dezembro na China. Estima-se que o número de infetados esteja em mais de quatro mil e a comunidade internacional toma medidas para evitar que a epidemia se torne uma pandemia.

Portugal já tem três hospitais em prevenção, dois em Lisboa (Curry Cabral e Estefânia) e um no Porto (São João). Será nestas unidades, em princípio, que ficarão internadas eventuais pessoas nas quais seja detetado o vírus. Uma hipótese relativamente remota, mas não inconcebível.

O surto original começou num mercado de marisco e animais em Wuhan, uma cidade chinesa de 11 milhões de habitantes. Ainda não é conhecido o animal que lhe deu origem, embora as investigações iniciais pareçam apontar para cobras e morcegos. O Expresso falou com Celso Cunha, diretor da unidade de microbiologia médica do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa, para compreender melhor a dimensão do problema.

Qual é o risco real neste momento em Portugal?
O risco real para os países da Europa, neste momento, é considerado baixo. Em Portugal também. Há alguns aeroportos europeus que têm voos diretos para Wuhan, a região onde foi detetado o vírus. Heathrow, Charles de Gaulle, Roma, Istambul e também Moscovo, salvo erro. Aparentemente, ainda não houve na Europa qualquer caso proveniente de pessoas que viajaram para essa região. No entanto, é necessário, na minha opinião, manter-se o alerta em relação a viagens não só para a China mas também para os outros países onde também já foram detetados casos confirmados: Tailândia, Japão, Coreia do Sul, Macau, nomeadamente.

Quando um viajante chega de Wuhan, o que acontece nos cinco aeroportos que mencionou? A pessoa é testada?
Neste momento, não, tanto quanto sei. Nos Estados Unidos, na Austrália e no Reino Unido está a ser considerada a implementação de medidas nos aeroportos – alguma triagem dos viajantes que vêm dessas zonas – mas ainda não sei exatamente o que irá ser implementado. Sei que as medidas estão a ser encaradas a sério, tanto mais que nos Estados Unidos já foi detetado um caso.

De que tipo de medidas se fala, e como se selecionariam as pessoas? Seria quem apresentasse aqueles sintomas que têm vindo a ser descritos, como febre ou dificuldades em respirar?
Alguém que viaje no avião com esses sintomas e que à chegada os manifeste. Quando aconteceu a epidemia de SARS, em que houve, também, um coronavírus na China que provocou inicialmente um surto, o qual se tornou numa epidemia e a seguir numa pandemia, houve cerca de nove mil casos e uns oitocentos, novecentos mortos – quase dez por cento de mortalidade. Nessa altura, foram implementadas medidas que passaram por uma triagem de pessoas com sintomas de alguma febre e um mal-estar compatível com um diagnóstico de coronavírus.

É evidente que a maior parte das pessoas que vêm com esses sintomas provavelmente não estão infetadas com qualquer coronavírus, mas com outro vírus ou com uma bactéria que também causa esse tipo de sintomas, semelhantes aos do vírus da gripe. Dependente da gravidade deles, poderá ou não ser aconselhável uma triagem prévia. E, se a pessoa estiver infetada, encaminhá-la para os serviços de saúde.

Isso faz-se logo no aeroporto?
No aeroporto não é fácil fazer o diagnóstico. Pode-se, eventualmente, ter pessoal especializado que consiga detetar uma suspeita. Mas o diagnóstico não.

Como é feito o diagnóstico?
Pode ser feito através de uma colheita do corrimento nasal. A partir daí, pode ser extraído o genoma do vírus. Neste caso, um genoma composto por uma molécula de ARN, não de ADN. É um ácido nucleico ligeiramente diferente do ADN que faz parte do património genético das nossas células. Embora nós também tenhamos montes de ARN no nosso organismo, mas com outras funções.

A informação genética destes vírus está contida nessa molécula de ARN, que é ligeiramente diferente do ADN. O que se faz no diagnóstico é amplificar esse ARN por uma reação semelhante à que se faz para amplificar o ADN, para o detetar. Uma vez que os cientistas chineses já publicaram a sequência completa deste coronavírus, foi possível desenvolver um teste baseado nesta sequência de PCR, ou reação em cadeia de polimerase. Com reagentes específicos, podemos amplificar apenas o que nos interessa; no caso, o genoma do vírus. Se conseguirmos amplificá-lo, temos um resultado positivo.

Esse teste não pode ser feito no aeroporto. Tem de ser feito num laboratório. Não demora muito tempo, não mais do que quatro, cinco horas.

O teste já está disponível no mundo inteiro?
Sim. Não comercialmente, mas já existem linhas do orientação do European Center for Disease Control e do CDC americano que indicam o protocolo a ser utilizado.

Portanto, em Portugal já existem meios para, se surgir um caso suspeito, para fazer esse teste.
Absolutamente. Qualquer laboratório de diagnóstico medianamente equipado está habilitado a fazer o teste.

Aqueles dois vírus de que se falou muito há uns anos, o SARS e o MERS, não tiveram casos detetados em Portugal
Tanto quanto sei, não houve casos desses em Portugal. Posso estar enganado.

Que tenha sido noticiado, não houve. E muita gente tem uma certa ideia de que essas doenças longínquas não chegam cá
Chegam, chegam. Tal como as nossas chegam a outros sítios. As pessoas viajam… Lembre-se da gripe asiática, no século passado. Em dois anos, espalhou-se da Ásia para todo o mundo e matou dezenas de milhões de pessoas. Houve também a gripe espanhola, em 1918. Numa altura em que não havia os meios de transporte que há hoje, morreram cem milhões de pessoas por todo o mundo em dois anos.

Falando do SARS e do MERS, por que é que não houve casos em Portugal? Foi uma questão de sorte ou de estatística?
Provavelmente, foi graças à tomada de medidas preventivas muito rápidas, que nos outros casos não foram tomadas. Por contraste, em 1918 nem sequer se sabia que aquilo era um vírus. As medidas de saúde pública não terão sido as mais adequadas.

O novo vírus, tanto quanto se sabe, é menos grave do que os outros dois de que falámos.
Até agora, sim. Estamos com 17 mortos e quinhentos e tal casos confirmados. Feitas as contas, são quatro por cento de mortalidade. Uma taxa elevada, para uma infeção respiratória. Bem sei que os mortos têm sido sobretudo pessoas de maior idade – a mais velha com 89, a mais nova com 48 – e com outro tipo de complicações, nomeadamente diabetes, hipertensão, Parkinson, cirrose do fígado, outras patologias associadas. Essas pessoas estavam mais vulneráveis e foram as primeiras vítimas. As pessoas saudáveis, jovens, têm mais probabilidade de sobreviver e de isto passar com sintomas ligeiros, como se fosse uma vulgar gripe.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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