Sociedade

A manifestação do José, do João e de 13 mil outros polícias

A manifestação do José, do João e de 13 mil outros polícias
TIAGO MIRANDA

A organização esperava até 15 mil participantes. Ao final de uma tarde dava como certo o desfile de 13 mil pessoas entre o Marquês de Pombal e a escadaria da Assembleia da República. A manifestação dos polícias em Lisboa, anunciada como a maior de sempre, começou ao som de um rock estranho que nem o Shazam conseguiu identificar e terminou com “Venham mais cinco”, de Zeca Afonso - passou ainda por Boss AC, Green Day e, por duas vezes, entoou-se bem alto o hino nacional e muito se gritou por Portugal

A manifestação do José, do João e de 13 mil outros polícias

Marta Gonçalves

Coordenadora de Multimédia

José casou-se há 35 anos. Era domingo. No dia seguinte, diz, voltou a casar-se. Saiu de Santarém em direção a Lisboa, até ao estádio de Alvalade, onde prestou provas para se juntar à Polícia de Segurança Pública (PSP). Há 35 anos que José continua casado com a profissão e também com a sua Eugénia, que esta quinta-feira o acompanhou naquela que se previa ser a “maior manifestação de sempre da polícia”.

“E o filho só não veio também porque tinha escola. De outra forma, também estaria cá”, contava José ainda no Marquês de Pombal, em Lisboa, junto ao Parque Eduardo VII, de onde arrancou a manifestação convocada pelos sindicatos da PSP e GNR, à qual se junto Movimento Zero (M0), criado nas redes sociais por anónimos. Pelos quase dois quilómetros que separavam o ponto de partida e a Assembleia da República, refere a organização, desfilaram 13 mil pessoas.

Esta não foi a estreia de José em manifestações mas este é o momento em que “já se atingiu os limites”. “Já meti os papeis para a pré-reforma. Estou à espera, não sei o que vai acontecer. Estou como tantos outros: à espera.” Ao contrário de boa parte dos presentes, José e Eugénia decidiram participar na manifestação de forma autónoma, sem qualquer apoio do sindicato ou do M0. Aliás, ambos estão entre a minoria de pessoas que não usam t-shirts alusivas a alguma organização. E neste campeonato de vestir a camisola, a do M0 foi claramente a vencedora (até porque estas estavam a ser vendidas por um €1 minutos antes do começo).

Junto às bagageiras das carrinhas, muitas pessoas esperavam por uma bandeira, por um apito ou um camisola. Aguardavam por um qualquer elemento que os transformasse no manifestante que queriam ser.

“Olha! Vem lá mais um. E vem carregado.” Os autocarros chegaram um por um, vieram de todo o país, garantiu ao Expresso Paulo Rodrigues, presidente da Associação Sindical dos Profissionais da Polícia (ASPP/PP). “Camarada, também vieste?” Os primeiros minutos eram de reencontros. “Só nestas alturas é que nos encontramos todos”, ouviu-se várias vezes. No meio da multidão que se formava havia bandeiras da Madeira, sotaques do Porto e os típicos “R” carregados das gentes de Setúbal. Estava ali gente de todo o país.

“Não é o Ventura, não vale a pena”

Já passavam bem para lá das 14h quando o trânsito foi parado. As linhas da frente da manifestação prepararam-se e então ali voltou a ficar claro que os sindicatos já não lideravam o acontecimento. Era o Movimento Zero. Uma grande faixa com o nome do movimento começado nas redes sociais foi estendida e as milhares de pessoas que ali se encontravam começaram a gritar - pela primeira vez, pois repetir-se-ia muito mais vezes ao longo da tarde - “zero, zero, zero”.

“O M0 serviu para unir todos os sindicatos numa só manifestação, até aqui os sindicatos estavam muito dispersos”, criticava um dos participantes. Ainda que sem qualquer conotação partidária, o M0 tem sido associado à extrema-direita e também ao Chega - o surgimento de André Ventura viria mais tarde a comprovar esta ligação (mas já lá vamos).

“Quem é? Quem é?”, perguntava um homem encorpado. Esticou-se e virou-se para o amigo. “Este é outro. Não é o Ventura, não vale a pena. Vamos embora.” E foram. Quem falava nesse momento aos jornalistas era João Cotrim Figueiredo (Iniciativa Liberal), que, tal como António Filipe (PCP), deslocou-se ao Marquês de Pombal para “ser dos primeiros a apoiar as reivindicações justas destas pessoas”.

A meio do caminho, um surpresa: cinco idosos esperavam sentados a passagem da manifestação. Erguiam pedaços de cartão: “Polícia amiga dos idosos”, “Obrigada por tudo”. Os cinco estão num lar ali perto e quando ouviram falar das queixas da PSP e da GNR quiseram descer a rua e prestar apoio. O senhor João pertenceu ao corpo da PSP. Tem 92 anos e não quis ficar de fora. “Acho muito importante o que eles estão a fazer”, explicou enquanto mostrava o seu cartão de identificação. “Hoje eles não andam lá muito bem fardados”, comentou depois quando o Expresso lhe perguntou sobre as mudanças na polícia.

O gesto de apoio não passou despercebido pelos manifestantes, que à passagem pelo local aplaudiram o grupo de cinco pessoas. Alguns saíram do protesto, trocaram apertos de mão e algumas palavras. Depois seguiam caminho.

Pelas ruas foram aplaudidos, entoaram gritos descontentes quando se cruzaram com a sede do Partido Socialista e desceram até à Assembleia, sempre escoltados pela polícia - pelos colegas que estavam ao serviço. Quando todos finalmente chegaram, não havia espaço em sobra. Esperaram que se organizassem e voltaram as costas à casa da democracia - como aliás já o tinham feito num protesto anteriormente - e cantaram o hino nacional.

Dentro do Parlamento, terminava o plenário. No final, pelo menos o centrista Telmo Correia desceu para falar com os dirigentes sindicalistas. Ninguém se apercebeu. Mas o que ninguém deixou passar despercebido foi a visita de Ventura, que ainda mal chegara e já era recebido com enorme entusiasmo. Gritaram por ele e berraram frases de luta. Ventura subiu a um bloco de cimento e voltaram a aplaudi-lo. Se a ida do representante do CDS foi quase invisível, o mesmo não se pode dizer da do único deputado do Chega.

André Ventura demorou-se, falou com todos os que o queriam ouvir e, por fim, um desafio da organização: “Não quer vir até aqui dizer umas palavras?”. E Ventura, claro, foi. Passou pelo meio da multidão até ao pequeno palco montado. Uma vez lá em cima disse o que todos queriam ouvir: “polícias unidos jamais serão vencidos”.

Não se demorou. Ainda assim a sua participação não foi vista com bons olhos pelo sindicatos. César Nogueira, da Associação Dos Profissionais Da Guarda, criticou a intervenção do deputado numa manifestação que se definiu como apartidária.

No final da tarde, já a luz sol desaparecia, ouvia-se das colunas o “Venham mais cinco” de Zeca. Antes, bem antes, toda uma playlist aleatória de canções - desde Boss AC a Green Day e até um rock estranho que nem o Shazam consegue reconhecer - foi a banda sonora daquele que se confirmou ser “um dos maiores protestos de sempre” das autoridades.

As festividades foram dadas por terminadas pela mesma voz que ao longo da tarde lançou os gritos de luta e garantiu que, se as reivindicações dos polícias não fossem ouvidas, a 21 de janeiro estariam de volta à escadaria da Assembleia. “Os autocarros têm contratos a cumprir e têm de partir às 18h.” A notícia foi recebida com descontentamento e assobios. E, outra vez, a mesma voz insistiu: “Quem veio nos autocarros tem de seguir porque os autocarros partem às 18h.”

Não havia mais nada a fazer, os autocarros iam partir e os manifestante haveriam de partir com eles.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: mpgoncalves@expresso.impresa.pt

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