Sociedade

Os perigos de voar sobre chamas: cabos de alta tensão, fumo, árvores e gruas

Os perigos de voar sobre chamas: cabos de alta tensão, fumo, árvores e gruas
MIGUEL A. LOPES

Mais de 60 concelhos nacionais estão sob risco de incêndio máximo esta quarta-feira. Quatro meios aéreos participam no combate às chamas num incêndio em Odemira. Voar sobre fogo não é um simples passeio aéreo e tem muitos riscos. O GPIAAF irá publicar uma nota informativa sobre o incidente que vitimou o piloto Noel Ferreira, na quinta-feira passada, até ao final desta semana

Os perigos de voar sobre chamas: cabos de alta tensão, fumo, árvores e gruas

Fábio Monteiro

Jornalista

Erro humano, problema mecânico, mas, acima de tudo, as circunstâncias no terreno. Estes são os principais motivos para a ocorrência de acidentes com as aeronaves no combate a incêndios, diz Jaime Marta Soares, presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses. “A cada milésimo de segundo o fogo pode tomar atitudes inacreditáveis, uma rajada de vento pode levar uma projeção de quilómetros. O fumo pode, de repente, mudar de direção, bloquear a visão do piloto”, afirma.

Mais de 60 concelhos nacionais estão sob risco de incêndio máximo esta quarta-feira. Em Odemira, cerca de 200 operacionais, apoiados por 73 veículos terrestres, combatem as chamas de um fogo que deflagrou ontem à tarde. Trata-se de uma área de mato, por isso os quatro meios aéreos que participam no combate são fulcrais para o dominar das chamas. Voar sobre incêndios, contudo, não é um simples passeio aéreo.

João Santos, piloto de helicópteros, corrobora as palavras de Marta Soares. “O fumo e os obstáculos - árvores, linhas de alta tensão ou até gruas de obras - são as principais dificuldades. O início e final de dia também são períodos complicados, devido à inclinação do sol. Há instantes em que perdemos a visibilidade”, explica o profissional que passou o último fim de semana no combate aos incêndios que deflagraram em Castro Daire.

Segundo o piloto, é importante lembrar que “estamos a falar de uma profissão de alto risco”. “Não podemos imaginar que levar um helicóptero e sobrevoar chamas tenha o mesmo risco que passear a pé na margem do Tejo, em Lisboa”, atira.

Nas últimas duas décadas, morreram seis pilotos portugueses que participavam de operações de combate aos fogos; no mesmo período, ocorreram mais de uma dezena de acidentes. Este ano, porém, o registo é mais gravoso: só nos últimos dois meses houve sete acidentes. Segundo relatórios do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF), desses, dois deveram-se à inexperiência dos pilotos e a dificuldades na comunicação aeronáutica.

Em julho, um avião pilotado por um profissional espanhol, com cerca de 4300 horas de voo, caiu na barragem de Castelo de Bode. “A linguagem aeronáutica em língua inglesa foi um dos fatores analisados e demonstrado como não efetivo nas comunicações com o serviço de informação de voo”, lê-se no relatório do organismo de investigação.

Fonte próxima da Autoridade Nacional de Proteção Civil disse ao Expresso que a falta de experiência é um problema sistemático dos pilotos recrutados pelas empresas privadas. A título de exemplo, lembrou o caso do piloto que faleceu na quinta-feira, enquanto pilotava um helicóptero Celca 2, após ter embatido em cabos de alta tensão. “Uma coisa são operações de salvamento da Força Aérea, outra é atacar fogos. É tudo muito mais imprevisível”, diz.

Devido ao regime de subcontratação anual, “não existe um acumular de experiência por parte dos pilotos”, aponta ainda outra fonte do GPIAAF. Noel Ferreira, o piloto de 35 anos que faleceu na quinta-feira passada, era um oficial no ativo da Força Aérea qualificado para operar os helicópteros de busca e salvamento EH-101. O militar estava de férias e autorizado a participar no combate aos fogos ao serviço da Afocelca.

Um problema antigo: os cabos de alta tensão

Uma nota informativa do incidente que vitimou Noel Ferreira irá ser publicada até ao final desta semana. Já o relatório final deverá demorar cerca de um ano, como é procedimento habitual, disse fonte do GPIAAF ao Expresso. O documento irá dar enfoque “às dificuldades e perigos provocados pelas linhas de alta tensão aos meios aéreos no combate aos fogos”, um problema que não é novo em Portugal.

Há dois anos, recorde-se, um piloto de 51 anos faleceu, em Castro Daire, em circunstâncias semelhantes às de Noel Ferreira. A análise do GPIAAF, publicada no ano passado, revelou que “apesar de o fogo florestal deflagrar muito próximo das linhas de alta tensão”, o piloto, português e com 965 horas de experiência de voo, “decidiu prosseguir com a missão” de combate ao incêndio, após desembarcar a equipa de cinco bombeiros num local seguro no topo do monte.

“Contribuiu para este acidente a localização e progressão do incêndio florestal em terreno montanhoso, e por debaixo de linhas de alta tensão que cruzavam o vale; o foco do piloto em completar a missão de combate ao incêndio, ignorando o risco de colisão iminente ao voar perto de linhas de alta tensão em orografia complexa”, revelou o relatório.

Dado que o helicóptero não tinha nenhum dispositivo de gravação, o GPIAAF notou, em todo o caso, que “não foi possível excluir a possibilidade de o fumo do incêndio florestal ter comprometido a consciência situacional do piloto”.

Em 2007, Jaime Marta Soares, ainda como bombeiro no terreno, presenciou a queda de uma aeronave e a morte de um piloto. Estava na Lousã, no combate a um incêndio, juntamente com mais quinze operacionais, encostados a uma casa. Havia muito fumo e na proximidade encontrava-se um pinheiro de grande porte. “Para nos tentar proteger, o piloto fez a descarga no sentido descendente, em vez de ascendente. Com o fumo que estava, não viu o pinheiro e uma asa do avião bateu. Despenhou-se”, recorda.

Para o Presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, os pilotos têm uma “vontade redobrada” de socorrer. “Voam muitas vezes a baixas altitudes, com muito fumo. Se levam um balde pendurado no helicóptero, têm de estar sempre atentos para que não fique preso em nenhuma estrutura”, explica.

Apesar de muitas tentativas neste sentido e alguns progressos, lembra Jaime Marta Soares, o “homem ainda não conseguiu superar a raiva da natureza”.

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