José Veiga canalizou 50 milhões de dólares para filho do Presidente do Congo
José Veiga
O papel do ex-agente de futebol num esquema de corrupção em Brazzaville foi ainda maior do que se pensava. Depois de o Expresso ter revelado que Veiga comprou um apartamento na Trump International Tower em Nova Iorque para a filha do Presidente Denis Sassou-Nguesso, Claudia, a organização não-governamental Global Witness conseguiu ter acesso a documentos que provam como o português canalizou 50 milhões de dólares para Denis Christel, irmão de Claudia
O esquema parece ter sido montado de forma a tornar impossível que pudesse vir a ser descoberto, envolvendo estruturas em seis países europeus, nas Ilhas Virgens Britânicas e em Delaware, nos Estados Unidos na América. No centro de tudo esteve uma empresa offshore criada no Chipre e oficialmente detida pelo ex-agente de futebol português José Veiga que foi usada para que um dos filhos do Presidente do Congo recebesse mais de 50 milhões de dólares em 2014 com origem na Asperbras, uma empresa brasileira de obras públicas, aparentemente como contrapartida de alguns contratos concedidos pelo governo daquele país africano.
José Veiga tem estado a ser investigado por crimes de corrupção internacional e branqueamento de capitais pelo Ministério Público em Portugal relacionados precisamente com o Congo, mas na complexa narrativa de que o intermediário foi um dos protagonistas havia ainda elementos importantes em falta. Novos documentos a que a Global Witness — uma organização não governamental que investiga e expõe casos de corrupção — teve acesso mostram como Veiga conseguiu disfarçar quase na perfeição o seu papel de testa de ferro de Denis Christel Sassou-Nguesso, que tem um nome muito parecido com o pai, o Presidente Denis Sassou-Nguesso, em pagamentos feito pelo grupo brasileiro à empresa cipriota Gabox Limited.
Apesar de Veiga aparecer no registo comercial do Chipre como o dono da Gabox Limited, de forma indireta, através de outras duas companhias cipriotas, a Manzapo e a Alicero, os documentos acedidos pela Global Witness revelam que Denis Christel, também conhecido pela alcunha de Kiki, era afinal o seu beneficiário secreto. Vários contratos foram certificados por um notário em Brazzaville, no Congo, em que Kiki surge como o proprietário das ações da Manzapo e da Alicero e, indiretamente, da Gabox. Isso permitiu manter em segredo o verdadeiro dono de todo o dinheiro recebido pela companhia, enquanto dava a aparência de que o destinatário era o antigo agente de futebol português.
Com estas provas, já é o segundo elemento da família Sassou-Nguesso em relação ao qual Veiga atuou como testa de ferro. Em outubro de 2017 o Expresso revelou como o português comprou um apartamento por 7,1 milhões de dólares em julho de 2014 na Trump International Tower em Nova Iorque para Claudia, filha do Presidente e irmã de Kiki. Um formulário do condomínio da Trump International Tower foi encontrado em nome de Lauren Lemboumba, filha de Claudia, juntamente com cartas de recomendação assinadas por Veiga e por um outro português que trabalhava com ele no Congo, Paulo Santana Lopes, irmão do antigo primeiro-ministro Pedro Santana Lopes.
Em abril deste ano um outro conjunto de documentos a que Global Witness teve acesso e analisados pelo Expresso permitiram completar essa história, expondo como tinha sido usado, na verdade, um esquema semelhante ao agora encontrado para a Gabox Limited: contratos certificados por um notário em Brazzaville atestavam que Claudia Sessou-Nguesso era a verdadeira dona da Sebrit Limited, uma companhia registada no Chipre como sendo de José Veiga e que foi utilizada para receber transferências da Asperbras.
O apartamento em Nova Iorque foi comprado com dinheiro saído de uma conta titulada pela Sebrit no antigo Banco Espírito Santo de Cabo Verde. Na realidade, os documentos do notário em Brazzaville significavam que a filha do Presidente foi não só beneficiada com aquela casa de luxo, mas com um total de 19,5 milhões de dólares transferidos para a Sebrit a partir da Asperbras.
Contratado para fazer um levantamento geológico
No caso de Kiki e da Gabox, o esquema de encobrimento parece tirada a papel químico do que foi usado para a irmã. A ligação entre o dinheiro recebido por esta companhia cipriota e um alegado favorecimento do governo do Congo à empresa brasileira é clara.
Especializada no Brasil no fabrico de tubos de PVC e também em sistemas de irrigação agrícola, a Asperbras expandiu o seu negócio para outras áreas no Congo. Um dos acordos feitos entre o governo de Sassou-Nguesso e a Asperbras foi uma encomenda de um levantamento geológico, sendo que a empresa brasileira acabou por subcontratar a Gabox Limited para fazer parte do trabalho, segundo um acordo escrito firmado na altura, a 11 de dezembro de 2013, através de uma subsidiária nas Ilhas Virgens Britânicas, a Energy & Mining. O preço estabelecido com o governo local foi de 200 milhões de dólares e foi atribuído 25% desse valor à empresa cipriota, isto é, 50 milhões de dólares.
Famoso pelo seu passado como agente de futebol, tendo chegado a representar alguns dos melhores jogadores do mundo, como Luís Vigo e Zinedine Zidane, Veiga era o representante da Asperbras no Congo desde que se instalara naquele país em 2011. Ao todo, terá ajudado a negociar com o executivo de Sassou-Nguesso cerca de 1,5 milhões de dólares em contratos públicos, sendo que o tesouro congolês chegou a pagar 675 milhões de dólares à empresa brasileira. Os preços foram considerados excessivos pela imprensa local e pelos procuradores que investigam o caso em Portugal.
Confrontado pela Global Witness, a Asperbras refutou que tenha havido um aumento artificial dos valores dos contratos públicos obtidos no Congo e que tivesse estado envolvida em quaisquer irregularidades na adjudicação desses contratos, argumentando que a Gabox foi paga apenas para arranjar novos contratos para empresa. Isso entra em contradição com o acordo firmado com a empresa, em que era suposto participar no levantamento geológico do Congo.
No entanto, a Gabox não só não possuía qualquer experiência anterior nessa área como, na realidade, foi constituída a 9 de dezembro de 2011, apenas dois dias antes de ter sido subcontratada pela Aspergas. A primeira transferência, no montante de 44,5 milhões de dólares, foi feita em janeiro de 2014, seguindo-se mais duas ao longo desse ano: uma de 1,6 milhões de dólares e outra de 4,4 milhões. Depois, da Gabox saíram transferências para outras empresas sediadas em Portugal, Espanha, Suíça e Polónia.
O estilo de vida perdulário de Kiki já tinha sido retratado antes pela Global Witness e também pela imprensa em França, onde um inquérito-crime sobre o património escondido da família Sassou-Nguesso foi baptizado com o nome de Affaire des Biens Mal Acquis. O jornal "Libération" chegou a citar um antigo funcionário da presidência em Brazzaville sobre os hábitos caros e excêntricos de Denis Christel: “Muda de camisa três ou quatro vezes por dia e gaba-se que nunca as lava e usa-as como lenços de papel”.
Em Portugal, o inquérito judicial contra Veiga decorre há vários anos no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) e levou à prisão preventiva do intermediário durante alguns meses, em 2016, sendo que ainda não foi deduzida acusação contra ele. Em outubro de 2017, quando foi confrontado pelo Expresso por causa da compra do apartamento de luxo em Nova Iorque, Veiga chegou a dizer: “A aquisição efetuada por esta sociedade foi financiada com meios próprios, num negócio que é totalmente alheio a terceiros, nomeadamente à família do Presidente do Congo. Nunca assumi que a compradora fosse outra entidade ou pessoa.” Um desmentido que parece cada vez mais difícil de manter.