Uma serra perdida na Beira torna-se referência mundial para a energia eólica
Nuno Soares/Smart Box
Novo Atlas Europeu do Vento é apresentado esta quinta e sexta-feira em Bruxelas, com o contributo de instituições portuguesas e da particular orografia da Serra de Perdigão, em Vila Velha de Ródão. Os dados recolhidos serão decisivos para definir a localização de parques eólicos e aproveitar melhor essa energia em todo o mundo
A Serra de Perdigão, no concelho de Vila Velha de Ródão, distrito de Castelo Branco, não é seguramente uma das mais conhecidas ou turísticas elevações portuguesas. Porém, serviu como uma luva para os objetivos das entidades que participaram na elaboração do Novo Atlas Europeu do Vento (NEWA, na sigla em inglês), que vai ser apresentado esta quinta e sexta-feira em Bruxelas, no âmbito de um encontro da WindEurope, a sociedade europeia de energia eólica. E porquê?
“O queríamos era uma serra que reproduzisse as dimensões de uma lomba, com uma região à volta relativamente plana. Isso faz com que o vento se aproxime de forma relativamente uniforme”, detalha ao Expresso José Laginha Palma, da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), coordenador português do projeto.
Perdigão não só corresponde a este requisito, como traz um bónus: uma segunda lomba paralela, quase da mesma altura (ambos os montes elevam-se cerca de 500 metros acima do nível do mar e 230 metros acima da envolvente), que forma o vale do Cobrão. “Ao estudar essa região estamos a estudar o escoamento num vale – há muitos, em qualquer orografia –, o vento que vem da esteira [zona após a elevação máxima] da primeira lomba e ainda o vento que vai atacar a segunda lomba, que por sua vez vai dar origem a outra esteira. Temos duas esteiras com caraterísticas diferentes. É uma variedade de coisas para as quais não havia medições em casos reais”, explica com entusiasmo.
Nuno Soares/Smart Box
Não é caso para menos. O professor da FEUP esteve envolvido desde a génese na ideia de criar um atlas que substituísse o anterior, publicado em 1989 e que serve ainda de referência para a indústria eólica. Visitou vários locais em Portugal até encontrar esta serra, que se revelou perfeita por várias razões: tem a dimensão ideal (cerca de cinco quilómetros de comprimento), é servida por estradas em boas condições e a Câmara de Vila Velha de Rodão apoiou a iniciativa, bem como os proprietários dos terrenos.
Em 2011 guiou a primeira visita com colegas estrangeiros, em 2015 foi aprovado o financiamento e o trabalho de campo em Perdigão decorreu entre 1 de maio e 15 de junho de 2017. Foi preciso eletrificar a serra, mas, se dúvidas houvesse, tornou-se óbvio que o esforço valia a pena quando a revista “Nature” dedicou um artigo à experiência, ainda em fevereiro de 2017. Em maio passado, o boletim da Sociedade Meteorológica Norte-Americana dedicou-lhe a capa e 22 páginas.
As aplicações práticas
Perdigão é um “laboratório vivo”, uma espécie de túnel aerodinâmico como aqueles em que se testam automóveis ou aviões, mas à escala real e em que o objeto de estudo é o próprio vento. Os fenómenos aqui analisados servem para muitas outras partes da Europa e do mundo: os dados recolhidos estão disponíveis em regime aberto e há infindáveis linhas de investigação possíveis. O projeto NEWA contou com instituições da Dinamarca, Bélgica, Suécia, Espanha, Alemanha, Letónia e Turquia, para além do Centro Nacional de Investigação Atmosférica e das universidades do Colorado e da Califórnia, nos Estados Unidos.
“É tudo extensível a outras regiões. Em zonas com as mesmas caraterísticas, se o vento enrola mais ou menos, se dá lugar a estruturas com vórtices, se acontecem fenómenos de separação de camada limite... São todas estas coisas que nós estudamos”, detalha o professor.
A aplicação mais evidente dos dados está relacionada com a localização dos parques eólicos: antes de serem construídos, os investidores estudam detalhadamente os locais e, escreve a “Nature”, citando o investigador Jakob Mann, um aumento de 10% na velocidade pode aumentar a energia produzida em 30%. Os dados obtidos no terreno em Perdigão servirão para avaliar, testar e aperfeiçoar os modelos que estão na base destas escolhas. “Isto vai ser completamente transformador para compreender a física da atmosfera e optimizar a energia eólica”, diz Sara Pryor, cientista da Universidade de Cornell, em Nova Iorque, à mesma revista.
A Enercon, a maior empresa alemã de construção de turbinas eólicas, já tinha um aerogerador no local, que se revelou também importante para o estudo. Instalou depois no terreno medidores de som, para analisar os ruídos produzidos pelo próprio aparelho. A dinamarquesa Vestas, a maior companhia mundial do ramo, também se juntou ao NEWA e alguns administradores visitaram mesmo Vila Velha de Ródão. “Perdigão é uma colina florestada. Medimos o impacto na distribuição de vento das árvores maiores, das mais pequenas e da distribuição das árvores no terreno. É algo que nunca aconteceu”, revela José Laginha Palma.
As aplicações não se ficam por aqui. Os dados deverão ser úteis também para compreender a poluição atmosférica, para auxiliar a navegação de drones e aeronaves e para o estudo de fogos florestais. Outra importante aplicação tem a ver com a meteorologia, nomeadamente padrões de vento, dada a microescala dos dados recolhidos.
Nuno Soares/Smart Box
O NEWA recebeu um financiamento de cerca de 14 milhões de euros, com a Fundação para a Ciência e a Tecnologia a atribuir 750 mil euros ao consórcio português, que, para além da FEUP, integrou o Instituto de Ciência e Inovação em Engenharia Mecânica e Engenharia Industrial (INEGI), o Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG) e o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA).
Um projeto para “30 anos”
O anterior atlas foi feito com base em medições realizadas essencialmente no Monte Askervein, situado numa ilha escocesa, em 1982 e 1983. Neste NEWA foram também obtidos dados em Kassel (Alemanha), na Serra de Alaíz (Espanha), em Hornamossen (Suécia), e em alto mar, na Europa do Norte. A recolha em Portugal foi a maior das cinco e, por isso, José Laginha Palma diz que a Serra de Perdigão (que dá nome à experiência) vai perdurar na comunidade científica. “Askervein durou 30 anos e todas as outras medições caíram no esquecimento. Esta será uma bola de neve, com a utilidade dos dados e o seu crescimento. Vai ser uma referência para sempre”, aponta. A notoriedade adquirida por Vila Velha de Ródão, ainda que em círculos restritos, é a única moeda de troca oferecida pelos cientistas pela ajuda “indispensável” da autarquia.
A capacidade de recolha de variáveis e de análise é muito superior ao que existia em 1989 e, em determinados campos, já não existiam dados reais para fazer simulações em computador. Em Perdigão, por exemplo, foi utilizada a tecnologia WindScanner, de origem dinamarquesa, que permitiu medir a velocidade e a direção do vento com recurso a feixes laser, evitando a dispendiosa montagem de mastros – ainda assim, foram utilizados 50, um “número recorde”, com até 30 sensores em cada um.
O grau de alguns dos detalhes impressiona. O levantamento aéreo, numa área de cerca de cinco quilómetros, foi feito numa escala de 15 centímetros. “Não temos capacidade de tratar em computador as coisas com aquele detalhe, mas talvez dentro de 10 ou 15 anos eles consigam e os dados estão lá. Agora, temos muitos anos pela frente para os analisar”, sublinha José Laginha Palma. Quantos anos? Talvez 30, aponta o mesmo responsável. “Este é o maior de todos os estudos que alguma vez foi feito. Todos os grupos europeus que podiam ter participado estão incluídos, dos Estados Unidos também estão os mais importantes. Agora o trabalho é sentado e de interpretação. Já temos várias simulações em computador, com dados muito interessantes”.