O Presidente Sidónio faz continência aos militares
Foto ESPÓLIO FERREIRA DA CUNHA / IP
Fernando Pessoa dedicou-lhe um longo poema e chamou-lhe “Presidente-Rei”. Sidónio, populista ‘avant la lettre’, chegou ao poder como o líder que vinha de fora e era diferente dos outros políticos. Andava no meio do povo, fez-se fotografar com crianças, velhos e doentes, reprimiu opositores e não encontrou remédio para a fome que assolava Portugal. Morreu aos 46 anos, assassinado a tiro na estação do Rossio, faz esta sexta-feira 100 anos
O mais jovem Presidente da I República casou-se com uma mulher mais velha quando tinha apenas 23 anos, no mesmo ano que retomou o curso de Matemática que interrompera para frequentar a Escola do Exército, na tentativa de encontrar uma carreira que lhe desse sustento.
Uma pneumonia levara-lhe o pai quando tinha 11 anos, sendo muitas as dificuldades económicas que a família enfrentou nos tempos seguintes. Não fosse a ajuda da madrinha Claudina e, provavelmente, o minhoto Sidónio Bernardino Cardoso da Silva Pais nunca se teria inscrito na Universidade de Coimbra e sido vice-reitor dessa instituição.
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Foi na vida militar, em Vendas Novas, que conheceu o republicano Brito Camacho, com quem virá a alinhar nas fileiras do Partido Unionista. O homem que Fernando Pessoa cantou como “Presidente-Rei” – NESTE POEMA escrito dois anos depois da sua morte – foi nomeado ministro do Fomento no I Governo Constitucional da República, em 1911, assumindo posteriormente a pasta das Finanças.
No ano seguinte, foi nomeado representante diplomático de Portugal em Berlim, com a missão de legitimar o novo regime no centro de uma Europa que ainda era maioritariamente monárquica. Regressou ao país em 1916, depois de a Alemanha declarar guerra a Portugal.
GOLPE COM FARDA ALHEIA
Os quatro anos que passou na Alemanha determinam a aura de diferença com que chega à chefia do Estado, em dezembro de 1917.
Sidónio ocupa a Rotunda [praça Marquês de Pombal] entre 5 e 8 de dezembro de 1917
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O diplomata que frequentara salões e receções no centro da Europa voltou a vestir a farda para liderar o golpe de 5 de dezembro. Dois meses depois, o “Diário de Notícias” perguntou ao novo Presidente se mandara fazer uma farda nova para liderar o golpe que instaurou a República Nova [cf. Alice Samara, autora da fotobiografia de Sidónio publicada pelo Museu da Presidência]: “Havia 20 anos que eu não vestia a farda. E como, se eu a mandasse fazer aí, daria na vista, o Feliciano da Costa emprestou-me um calção e um dólmen de linho, a que se puseram os galões de major. O capote era de meu filho, que é aluno da Escola de Guerra, e a que mandei também pôr os galões. Vesti-me num quarto em frente à Escola de Guerra”.
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1917, O ANO DE TODOS OS PRODÍGIOS
A morte e a fome pairavam como céu de chumbo, num ano em que Portugal teve cinco governos, entrou na frente europeia da Grande Guerra, e o tifo matou quase dois mil portugueses.
O clero, fortemente acossado pela lei da separação da Igreja e do Estado, agarrou as visões dos pastorinhos na Cova da Iria, como o anunciar de um novo tempo que chegaria com a oração pelo fim da guerra, e contra a instalação de um estranho mundo que começara a desenhar-se com a viagem de comboio de Lenine para instaurar o poder dos sovietes com o apoio/conivência dos alemães, que tinham como principal objetivo tirar a Rússia do conflito, desferindo assim um golpe nas forças aliadas. [Recorde-se que Lenine saiu de Zurique a 9 de abril num comboio selado e chegaria a Petrogrado/São Petesburgo uma semana depois].
E DE TODOS OS POPULISMOS ‘AVANT LA LETTRE’
A República Nova de Sidónio surge neste contexto. Sidónio, o homem que veio de fora, alheio à terrível decisão que levara Portugal para a guerra que matou mais de oito mil portugueses, surge como salvador messiânico “longe da fama e das espadas /Alheio às turbas”, como escreveu Pessoa.
Sidónio ocupa a Rotunda (praça do Marquês de Pombal em Lisboa) entre 5 e 8 de dezembro, “apeando os democráticos do poder, contando tanto com o apoio, como com a expectativa benévola de vários grupos e agentes sociais, de entre os quais o movimento operário tratado com dureza” pela governação de Afonso Costa, explica a historiadora Alice Samara: “Inicialmente o golpe parecia ser apenas uma mudança de turno governativo, mas depressa se percebeu que, para Sidónio Pais, era a República Nova”.
Sidónio intuiu que o seu mandato passava pelo contacto com o povo e viajou por todo o país pouco depois de ser investido na chefia do Estado
O SÉCULO CÓMICO / HEMEROTECA MUNICIPAL DE LISBOA
AS SOPAS DO SIDÓNIO
Governou 374 dias, até ser assassinado, na estação do Rossio, em Lisboa, quando ia apanhar o comboio para o Porto. Morto Sidónio, sobreviveu o sidonismo, essa “encruzilhada entre mundos, com características políticas velhas e outras inovadoras, regime [presidencial] original que foi procurando e experimentando diferentes soluções”, diz Alice Samara.
A memória do Presidente perdurou quase como um mito, em parte graças ao trabalho desenvolvido pela Associação 5 de Dezembro, criada em 1918 para ajudar os mais carenciados, que eram muitos [recorde-se que o jornal “O Século” já distribuía sopa aos pobres].
“A faceta mais visível desta política é a distribuição de alimentos [a conhecida ‘Sopa dos pobres’ ou ‘Sopa de Sidónio’]”, como se lê na sua biografia no site do Museu da Presidência.
A IMPORTÂNCIA DA IMAGEM
Sidónio – que, para além de ser o mais jovem de todos os PR da I República, era bonito, tinha boa presença e criou uma viva impressão nas mulheres da elite lisboeta – cultivou a imagem do líder “generoso e amigo dos mais desfavorecidos. O governo também dedicou grandes somas no combate às duas epidemias que atingem o país em 1918 – a febre tifoide e a gripe pneumónica – que proporcionam a Sidónio várias visitas a hospitais [cf. biografia M.P.]”, que estão devidamente documentadas e fotografadas.
Os restos mortais do carismático líder da República Nova ficaram inicialmente no Mosteiro dos Jerónimos, sendo posteriormente trasladados para o Panteão Nacional pelo Estado Novo; durante muitas décadas, um conjunto de velhas senhoras velou para que existissem sempre flores junto do túmulo de Sidónio.
“A Situação”, jornal sidonista, teve três edições no domingo 15 de dezembro de 1918
BIBLIOTECA NACIONAL
O CRIME, OS JORNAIS E OS ASSASSINOS
A rádio só chegaria na década seguinte, mas os jornais, que na época imprimiam cerca de 300 mil exemplares por dia (só em Lisboa), fizeram relatos detalhados sobre o crime que vitimou Sidónio às 23h45 de sábado 14 de dezembro de 1918. Sabemos que o primeiro tiro não atingiu o Presidente e que este ainda foi transportado com vida para o hospital de São José, vindo a falecer numa maca, na sala de banco, pouco depois de ali ter chegado.
Os jornais forneceram nomes, profissões e moradas dos presumíveis assassinos – Luiz Furtado Saraiva, que falhou o primeiro tiro, e o alentejano José Júlio Costa, que na véspera tinha pernoitado no Hotel Internacional, a poucos metros da Estação do Rossio – e de todos os que foram detidos.
Maria dos Prazeres Martins Bessa, a mulher com quem Sidónio se casou em fevereiro de 1895, e que com ele teve cinco filhos, continuou a viver em Coimbra quando o marido assumiu a chefia do Estado. Nunca participou em qualquer ato público nesse período. Entrou pela primeira e última vez no Palácio de Belém um dia depois da morte do marido, para velar o corpo, que estava em câmara ardente na divisão que é atualmente conhecida como “Sala dos Embaixadores”.
À semelhança dos seus antecessores, o Presidente Sidónio viveu no anexo do Palácio de Belém, e PAGOU RENDA como eles
Dez anos depois da sua morte, em 1928, a Ditadura Militar concedeu à viúva de Sidónio uma “pensão de sangue” na razão de 50% do vencimento de um “general com mais de 5 anos” de graduação no posto. Olga Manso Preto, filha de Sidónio, também teve direito a uma pensão igual à de Maria dos Prazeres Bessa Pais
Milhares de pessoas assistiram à passagem do armão com a urna de Sidónio pelas ruas de Lisboa
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Sidónio já tinha sobrevivido a um atentado, no dia do primeiro aniversário do golpe que liderara, quando condecorava os sobreviventes do navio de guerra “Augusto Castilho”. Não teve a mesma sorte nove dias mais tarde, mas o seu consulado viria a marcar grande parte do século XX português. Para Alice Samara, “foi uma experiência política premonitória” de autoritarismo ditatorial, que congregou uma amálgama de republicanos descontentes com o curso dos acontecimentos, monárquicos, e católicos. Anos mais tarde, houve sidonistas que aderiram ao Estado Novo, outros permaneceram republicanos e democratas.
“O sidonismo foi uma experiência política premonitória sem ser ainda o fascismo. Nos anos vinte, a memória de Sidónio Pais serviu para a defesa de correntes presidencialistas, de predomínio e fortalecimento do executivo. Não podemos deixar de olhar o sidonismo na conjuntura das transformações políticas decorrentes do conflito mundial e salientar o impacto que a revolução russa de 1917 teve nos sectores mais conservadores do espetro político e nas suas primeiras reações ao que lhes parecia ser uma temível experiência subversiva”, explica Samara.
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O homem que poderia ter tido uma longa vida como lente de Matemática da Universidade de Coimbra foi uma “figura política central do regime” republicano e de tudo o que se seguiu: “Vestiu a farda e assumiu uma persona pública: bélico, marcial, mas simultaneamente caridoso, fazendo-se fotografar debruçado sobre os tifosos, ou nos lanches com as crianças”, diz a historiadora Alice Samara.
O corpo do “Soldado-rei que oculta sorte/ Como em braços da Pátria ergueu, / E passou como o vento norte / Sob o ermo céu” foi embalsamado e sepultado nos Jerónimos uma semana depois de ter sido morto numa cidade que, em menos de 11 anos, assistiu ao assassínio do rei, do príncipe herdeiro e do Presidente da República. Retrato de um Portugal sem brandos costumes.