Sociedade

Os ecossistemas subterrâneos estão ameaçados e com eles a água que bebemos

O Algar do Pena tem a maior sala cavernícola conhecida em Portugal
O Algar do Pena tem a maior sala cavernícola conhecida em Portugal
Foto Paulo Cunha / Lusa

97% da água doce disponível para consumo humano no planeta é subterrânea (os restantes 3% estão em rios e lagos). E há um problema: “Não sabemos o que vai acontecer a estes ecossistemas debaixo de terra com as alterações climáticas que estão a acontecer a uma velocidade estonteante”

Os ecossistemas subterrâneos estão ameaçados e com eles a água que bebemos

Carla Tomás

Jornalista

A 40 metros de profundidade observa-se a maior sala subterrânea conhecida em Portugal. São 125 mil metros cúbicos recheados de estalactites e estalagmites e outras formações rochosas no coração do Parque Natural da Serra d’Aire e Candeeiros. A magnífica paisagem cavernícola é observada com fascínio por perto de uma centena de cientistas oriundos de todo o mundo. São participantes na 24.ª Conferência Internacional de Biologia Subterrânea, que decorre na Universidade de Aveiro esta semana e que confirma que Portugal está na moda também pelas recentes descobertas de novas espécies das cavernas, entre as quais se encontram insetos, aracnídeos e outros invertebrados. É que isto das cavernas não tem só interesse pelas formações rochosas. Mas já lá vamos.

Em grupos de 12 a 15, os visitantes descem às profundezas do “Algar do Pena”. São 183 degraus por uma escada de ferro em caracol. Na plataforma em baixo (a 40 metros da superfície e outros tantos da base), a bióloga Sofia Reboleira — co-organizadora da conferência e a cientista que colocou Portugal no mapa internacional dos ‘hotspot’ da biologia subterrânea pelas suas descobertas dentro e fora do país — explica como esta cavidade foi encontrada por acaso em 1985 por Joaquim Pena, um homem da terra (da freguesia de Alcanede, Santarém), que ali explorava uma pedreira de calcário para calçada. Doze anos depois, passou a albergar o primeiro Centro de Interpretação Subterrâneo em Portugal. E, desde 2014, é a casa do único Troglobiário - Estação Subterrânea de Monitorização da Fauna Cavernícola - de Portugal Continental.

Pequenos seres que depuram as nossas águas

Com a ajuda de lupas, os visitantes procuram ver os minúsculos seres vivos dentro dos aquários ali expostos, todos invertebrados endémicos da região, descobertos na última década. “Sendo da região, se algum fugir não haverá problema”, explica Sofia Reboleira, que começou a sua carreira na Universidade de Aveiro e trabalha desde 2017 no Museu de História Natural da Dinamarca, em Copenhaga. Levar estes bichos para um laboratório não seria eficaz, pois rapidamente morreriam e não haveria forma de monitorizar os seus comportamentos.

Um dos pequenos artrópodes encontrados nas cavidades do Parque Natural da Serra d' Aire e Candeeiros que contribui para a purificação das águas subterrâneas
Paulo Cunha / Lusa

Aqui encontramos um escaravelho, um mil-pés, um bicho de conta, dois ou três minicrustáceos e uma aranha. O aracnídeo chama a atenção de alguns visitantes quando um dos guias explica que a fêmea come o macho após a cópula e depois ela própria dá-se de alimento às crias. A cientista explica que o canibalismo é comum entre os aracnídeos e outros seres das cavernas porque vivem com parco alimento. “Sem fotossíntese, não há plantas e os alimentos chegam através da água que se infiltra. Algumas destas espécies não têm olhos nem pigmentos e têm um ritmo fisiológico muito próprio.”

O que mais preocupa Sofia Reboleira é o risco que paira sobre estes pequenos seres subterrâneos e o seu importante papel na purificação da água que bebemos e utilizamos nas nossas casas, já que intervêm “nos processos de reciclagem de matéria orgânica e de contaminantes”, oriundos da atividade humana.

Por isso, lembra: “97% da água doce disponível para consumo humano no planeta é subterrânea (os restantes 3% estão em rios e lagos)”. E adverte: “Não sabemos o que vai acontecer a estes ecossistemas com as alterações climáticas que estão a acontecer a uma velocidade estonteante”.

Foto Paulo Cunha / Lusa

Perante períodos de seca cada vez mais frequentes e longos, com consequências na disponibilidade de reservas de água doce e a crescente contaminação destes recursos, “provavelmente vamos enfrentar problemas muito mais sérios do que aqueles que já temos atualmente”, alerta.

Para já, sabe-se que “estas cavidades refletem a subida ou descida da temperatura à superfície e que no caso do Algar do Pena a variação anual ronda 1ºC”. Porém, uma subida de 2ºC ou de 3ºC na temperatura média do planeta, como indicam as projeções científicas, poderá ter efeitos devastadores para os ecossistemas das profundezas. O problema, reforça a bióloga, “é que estes organismos têm uma tolerância térmica muito reduzida e se alterarmos a realidade a que estão habituados podem vir a ser extintos”. Esta é uma hipótese que a ciência ainda está a estudar e é um dos temas fortes da conferência que decorre em Aveiro.

A preocupação já está a ser espalhada entre as camadas mais jovens do concelho. “Os alunos dizem muitas vezes que se estes seres não existissem, a água da região ficaria poluída e não daria para beber, o que são ensinamentos muito importantes para quando forem adultos, sobretudo numa região onde as pedreiras têm tanta importância económica mas cujos proprietários não estão provavelmente preocupados em preservar estes organismos”, reforça Helena Vieira, diretora do Agrupamento de Escolas D. Afonso Henrique, de Alcanede.

Os alunos do Clube de Ambiente deste agrupamento ajudaram no último ano a monitorizar e a alimentar estes seres do laboratório vivo do Algar do Pena. Para já, o projeto de ‘Citizens & Science’ envolveu só alunos do segundo ciclo, com os quais a investigadora se reuniu algumas vezes e fala com regularidade por skype. Mas no próximo ano envolverá um total de 1400 alunos do agrupamento, no âmbito da flexibilidade curricular.

Portugal revelou-se este ano um dos “hotspots” da biodiversidade debaixo de terra depois de numa única gruta —a de Vale Telheiro, no concelho de Loulé, no Algarve — terem constatado a existência de 20 espécies cavernícolas, o que o torna “um caso raro” para a comunidade científica que explora a vida subterrânea. Porém, estas espécies não estão a salvo, alerta Sofia Reboleira, já que sobre estes ecossistemas pairam várias ameaças, a começar, denuncia, “pelo acumular de entulho depositado próximo da entrada desta gruta”, sem que as autoridades o impeçam.

Ana Sofia Reboleira nasceu em Caldas da Rainha. Aos seis anos ficou fascinada por grutas ao visitar a de Mira de Aire. Aos 14 fez a primeira expedição espeleóloga. E aos 37 anos é uma das mais referenciadas investigadoras em biologia subterrânea
Foto Paulo Cunha / Lusa

A bióloga de 37 anos já soma no seu currículo a descoberta de 54 espécies diferentes em Portugal e no estrangeiro. Os projetos de investigação em que está envolvida permitiram na última década “triplicar o número de espécies cavernícolas conhecidas no país”. Isto porque durante muitos anos os trabalhos nesta área estiveram “adormecidos”, apesar de ser esperado que Portugal fosse um local rico em diversidade biológica debaixo de terra devido à acumulação de nutrientes no solo e a outras características físicas do território.

De todas as descobertas, a favorita de Sofia Reboleira é o pseudoescorpião gigante, encontrado em grutas algarvias em 2008 e que mede cerca de dois centímetros, o que comparado com a maioria dos outros pseudoescorpiões ali encontrados o torna enorme: “É como vermos um cão do tamanho de um elefante”.

Mas Sofia não se considera uma pioneira. A história da biologia subterrânea em Portugal remonta aos anos 30 do século XX, conta, e teve início com um senhor chamado António de Barros Machado, numa altura em que estes exploradores desciam às grutas com cordas de sisal e sem lâmpadas led ou com os equipamentos e a segurança com que hoje trabalham os espeleólogos e os biólogos que estudam a vida subterrânea.

À saída do Algar do Pena, que alberga uma dezena de espécies diferentes, encontramos Joaquim Pena, o homem que a descobriu há 36 anos e que a ela desceu com cordas de sisal. Recorda que ali deu “um tiro” em busca de pedra para calçada e descobriu “um buraco muito fundo que estava tapado com uma laje lá colocada quando Deus andou pelo mundo”. Revelou a descoberta ao então Serviço Nacional de Parques e Reservas (hoje Instituto de Conservação da Natureza e Florestas) e perdeu a concessão da pedreira. Mas não se arrepende. Na altura não ganhou uma indemnização mas sim um emprego para ele e a mulher a acompanhar espeleólogos e visitantes. “Não estou nada arrependido, isto é uma beleza da terra”, diz, criticando “outros” que procuram esconder descobertas semelhantes para não perderem o negócio. Neste dia quente de agosto, Joaquim Pena vai voltar a descer ao algar com o seu nome.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: ctomas@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate