Ministro justifica porque assinou manifesto contra o Governo: “Não posso dizer que o sistema científico esteja bem”
Manuel Heitor: “Quando o anterior Governo negociou o Acordo de Parceria Portugal 2020 com a UE não privilegiou a ciência. E estamos agora a sofrer o impacto dessa decisão”
Alberto Frias
Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior tomou uma atitude inédita em Portugal: subscreveu um manifesto, já assinado por mais de 3500 investigadores, que critica fortemente ... a política científica do seu Governo. Paulo Ferrão, presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia, a principal agência pública de apoio à investigação, fez o mesmo
À hora de fecho desta edição do Expresso Diário, o Manifesto Ciência Portugal 2018, que critica fortemente a política científica do Governo, já tinha mais de 3500 assinaturas de investigadores de todo o país. Os subscritores exigem “financiamento consistente e transparente, um simplex para a ciência e uma política de contratação regular, coordenada e baseada no mérito”. E dizem que as principais consequências dos estrangulamentos no sistema científico nacional provocados pela política governamental são “a incapacidade de atrair os melhores investigadores do mundo, com riscos cada vez maiores de fuga de cérebros; a irregularidade de concursos para projetos científicos e contratação de investigadores; a falta de atratividade, competitividade e credibilidade internacional; o afastamento dos melhores avaliadores internacionais; o afastamento dos melhores investigadores e o bloqueio da carreira baseada no mérito científico; e a debilitação da comunidade e das instituições científicas nacionais”. Manuel Heitor explica ao Expresso porque tomou a atitude inédita e aparentemente paradoxal de subscrever um manifesto tão crítico em relação à política científica do Governo, da qual ele é o principal responsável executivo.
Porque subscreveu o Manifesto Ciência Portugal 2018? Para dar mais relevância ao tema. O manifesto tem uma mensagem importante e por isso senti a obrigação de o subscrever, porque sou sensível às críticas que ele contém. De uma forma geral, o documento diz que há deficiências no nosso sistema científico e eu não posso dizer que o sistema esteja bem.
Está de acordo com tudo o que é dito no documento? Não, porque os cientistas dizem que são diferentes de outros grupos profissionais, ou seja, o manifesto reflete interesses corporativos e isolamento social que não podem continuar. E não basta reivindicar, é preciso também mais responsabilização das instituições académicas e científicas na resolução dos problemas existentes. Não podem dizer que são instituições de excelência e depois terem trabalho precário, não darem dignidade ao emprego científico. Nesse sentido, o documento é muito conservador.
alberto frias
A sua atitude é uma forma de pressão sobre o resto do Governo, em particular sobre o Ministério das Finanças? Não, o problema é outro. Quando o anterior Governo negociou o Acordo de Parceria Portugal 2020 com a União Europeia, não privilegiou a ciência. Por isso estamos agora a sofrer o impacto desta decisão. Mas, ao mesmo tempo, a ciência feita em Portugal está com uma dependência excessiva do financiamento dos fundos europeus. E quando cheguei ao Governo encontrei uma máquina do Estado muito mais burocratizada na gestão destes fundos do que há dez anos, quando fui secretário de Estado da Ciência (com Mariano Gago).
Porquê? Por exemplo, mobilizámos fundos da UE para aumentar o financiamento aos projetos de investigação científica e desenvolvimento tecnológico selecionados em concurso, mas a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) tem de contactar seis instituições diferentes para concretizar esse financiamento e os procedimentos são tão complexos que há inevitáveis atrasos, de que se queixam com frequência os cientistas e as instituições.
Devido aos problemas burocráticos, os cientistas não deviam ter um tratamento diferente em termos de legislação? Não defendo exceções a não ser naquilo que é mesmo diferente na comunidade científica, devido à sua grande descentralização. É o caso do código dos contratos públicos, que estava a impor um teto máximo de despesa de 75 mil euros por fornecedor, o que condicionava muito a compra pelos centros de investigação de equipamentos e reagentes químicos caros e sofisticados, que não são fabricados por nenhum fornecedor nacional.
alberto frias
O código foi alterado a 16 de maio no decreto-lei de execução orçamental de 2018 para acolher precisamente a especificidade das atividades de investigação. Por que razão é criticado pelo manifesto, se resulta de uma diretiva da UE para tornar as compras públicas mais transparentes? Porque há instituições de investigação muito fragilizadas e sem capacidade para aplicar as regras europeias. Por isso burocratizaram o sistema de compras e o que chega aos cientistas é um conjunto de dificuldades. Os problemas que a comunidade científica sente exigem, assim, um esforço das próprias instituições para simplificar todos os processos, porque grande parte da burocracia ocorre aí. E há instituições que continuam a usar o Código dos Contratos Públicos (CCP) de forma deficiente. No fundo tem de haver um esforço conjunto com a administração central, não basta reivindicar.
Mas o manifesto não tem razão? O manifesto quer que todas as compras públicas dos centros de investigação sejam excluídas das regras do CCP, o que não acontece em nenhum país da UE. A alteração aprovada a 16 de maio tornou o código mais claro e em tudo o que são compras em mercados específicos, como equipamentos e reagentes, onde há poucos fornecedores, o CCP não será aplicado.