Nenhuma fotografia consegue captar o que é viver nesta cidade
Em Lagos, esta é uma das formas de dormir
Foto Cibele Chaves/DR
Não há casas para toda a gente, os esgotos são a céu aberto e não há recolha de lixo. Lagos é a maior cidade nigeriana e nela vivem pelo menos 13 milhões de pessoas. No meio do caos, depois de chover, vê-se a vegetação a rebentar - até nas juntas de dilatação das pontes. “Parece que é a própria natureza a mostrar que, por mais que a destruam, ela é ainda mais forte.” Esta é a oitava história da segunda série “Em Pequeno Número”, que o Expresso começou a publicar há dois anos e que relata a vida de portugueses que vivem em regiões onde quase não os há
É por volta das quatro da manhã que muitos nigerianos acordam em Lagos. Pela frente têm um dia de trabalho, de trânsito e confusão naquela que é a maior cidade da Nigéria, com 13 milhões de pessoas – e grande parte delas sem condições mínimas de vida.
“Os nigerianos têm uma vida muito difícil. Levantam-se muito cedo e chegam a casa muito tarde – e a casas sem condições”, conta Cibele, a viver há dois anos na Nigéria com a filha de dez anos e o marido, Vasco, que já tinha partido para Lagos em 2011. “A vida na Nigéria não é fácil, no entanto tenho algum pejo em dizê-lo porque nós, enquanto comunidade de expatriados, temos a vida facilitada em vários aspetos. A vida difícil e dura é para os nigerianos, não para nós.”
Foi uma proposta de trabalho “aliciante” que levou Vasco até à Nigéria há seis anos. As empresas internacionais – como a Seven Up, onde trabalha – procuram estrangeiros por duas razões essenciais: o conhecimento técnico e a “disciplina ou controlo”, explica o português. “A decisão foi muito rápida, não tivemos muito tempo para nos prepararmos mas decidimos em família que ele iria primeiro e eventualmente nós depois.” Há dois anos, Cibele e a filha juntaram-se a Vasco, mas antes disso quiseram assegurar que a filha ainda fizesse o 1.º e 2.º ano na escola em Portugal, para aprender a ler e a escrever.
A capital nigeriana, onde agora vivem, é uma cidade que não pára e o cansaço permanente em que vivem os nigerianos faz com que seja muito comum dormirem durante o dia. “Dormem em qualquer lado, seja nos corredores ou nas secretárias no local de trabalho, mesmo que, por exemplo, sejam seguranças.”
Vasco conta que a população que vive em Lagos deverá rondar – “não oficialmente” – os 20 milhões. “Vivem numa área inferior à Grande Lisboa”, aponta. “Não há espaço livre. A construção não é feita em altura, é tudo horizontal, pelo que todo o espaço está tomado. E a cidade continua a crescer todos os dias a um ritmo bastante grande.”
Foto Cibele Chaves/DR
Pouco espaço e muita gente significa que não há casa para todos. “Muitas pessoas vivem na rua. Há pessoas debaixo de todas as pontes.” O saneamento é uma vala aberta que vai dar a outras valas cada vez maiores e onde, de vez em quando, são lançados químicos para ajudar a dissolver a mistura de esgoto, gorduras, lixo e os óleos dos muitos geradores que existem na cidade para dar resposta à falha de eletricidade. “É tudo a céu aberto e tudo exposto. O cheiro é nauseabundo.” Também não há recolha de lixo na cidade. “Cada um trata do seu”, acrescentam. E isso significa que muita gente queima o lixo que produz – e que inclui muito plástico, garrafas e embalagens de esferovite (onde é habitualmente servida a comida de rua) –, tudo em enormes quantidades. “Por exemplo, as pessoas bebem água nuns saquinhos transparentes. E isso vai tudo para o lixo.”
Peixe caríssimo, carne em panela de pressão: o dia a dia de 3 portugueses em Lagos
Foto Cibele Chaves/DR
Segundo os dados da Direção-Geral de Assuntos Consulares e das Comunidades Portuguesas, no final do ano passado, havia 170 portugueses inscritos no consulado. Cibele e Vasco têm contacto com outra família portuguesa também com filhos e de vez em quando veem outros portugueses a trabalhar no país.
“Tendo em conta que não exerço uma atividade profissional, aqui o meu dia a dia é direcionado para a minha filha. Acordamos às 6h30, porque as aulas aqui começam às 7h30, e depois volto para casa. O marido vai trabalhar por volta dessa hora e volta entre as 18h e as 19h a casa. Passo bastante tempo sozinha e encontrei hobbies e gostos que nem sabia que tinha. Durante algum tempo também dei aulas de português a duas estrangeiras e penso retomar essa atividade, pois é muito importante encontrar estímulos intelectuais.”
Por hábito, comem em casa e recorrem sobretudo aos muitos supermercados existentes em Lagos. “Ao fim de semana conseguimos ir ao restaurante, há alguma oferta em Lagos.” Contudo, comer fora é caro e apenas a classe média o consegue fazer. E ainda que as cadeias internacionais de restaurantes como a KFC tenham procura – sobretudo por causa do frango frito, que é muito apreciado na região – a opção acaba por passar por outras cadeias locais, mais baratas.
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A alimentação diária da população é muito à base de farinhas com água ou arroz com banana. Carne só em dia de festa. Os portugueses optam por comprar carne em sítios específicos e de maior confiança. “E é confecionada em panela de pressão, porque é muito rija.”
A escolha de alimentos é porém condicionada e por isso fazem o pão e os iogurtes em casa. “Basicamente não comemos peixe. Duvidamos sempre de onde vem o peixe, em que condições é que vem e não há hábito de consumo de peixe fresco, é mais seco.” Vasco conta que por vezes chegou a ir comprar peixe fresco diretamente aos pescadores que chegavam nos barcos e o vendiam. “Mas isto acontecia no meio da lama, sem condições nenhumas.” Também há peixe congelado, mas com preços altos. “Um bocado de polvo chega a custar 150 euros e uma posta de salmão custa 25 euros.”
Foto Cibele Chaves/DR
A chocante miséria e chocante riqueza
“O que mais me surpreendeu e continua a surpreender é a chocante miséria em que vive boa parte da população. É algo que nos entra pelos olhos, é verdadeiramente uma experiência ter este contacto com uma realidade que para muitos é distante ou mesmo irreal. Por muito que tente transmitir isto aos meus amigos e família, é algo que fica sempre aquém”, descreve Cibele.
Uma parte da população nigeriana mais pobre trabalha como empregados de limpeza, motoristas, amas ou outro tipo de função na casa dos nigerianos de classe média e nos estrangeiros, na sua grande maioria. Mas a grande parte trabalha como operários, motoristas, levanta-cargas. E ainda nos mercados locais, como vendedores.
No trânsito vende-se de tudo
Foto Cibele Chaves/DR
“Por outro lado há também a chocante riqueza, até nisso viver aqui é um desafio no que se refere à educação que damos aos filhos. Manter os pés no chão é essencial.” Cibele e Vasco puseram a filha numa escola internacional – e até há várias na Nigéria. “A escola é sobretudo frequentada por filhos de nigerianos muito ricos. Mas nem sei bem o que fazem os pais das crianças, porque elas chegam sempre à escola com as amas.” Só quando há festas é que consegue cruzar-se com alguns pais e perceber quem são.
A segurança é outro dos problemas presentes quando se vive em Lagos. Cibele diz não viver com medo e fazer a sua vida de forma normal, ainda que condicionada em alguns aspetos. “O que me falta essencialmente é a minha liberdade de ir e vir, pois aqui tudo tem de ser planeado.”
Foto Cibele Chaves/DR
O casal diz viver uma sensação dupla em relação à vida na Nigéria: por um lado têm as dificuldades diárias de viver numa cidade como Lagos, mas por outro lado já se foram adaptando. Até mesmo a filha de dez anos, contam, já se integrou bem na escola e tem amigas. “Quando estou em Portugal tenho saudades da Nigéria. É uma coisa um bocado difícil de explicar. Um dia que me vá embora sei que vai ser difícil – pelas pessoas, pelos amigos que se vai fazendo. Terei saudades do contacto com outras culturas, da cor e do bulício da cidade.”
Uma das coisas que hoje concluem é que é muito difícil descrever em detalhe - e de forma justa - a vida em Lagos e as características da cidade. “Nenhuma fotografia capta o que é a cidade. Não é o mesmo que estar lá.” O que os olhos veem não transmite o sentimento que se sente, concluem.
“Ninguém pode dizer que gosta de aqui viver. Mas as pessoas adaptam-se e também há coisas boas.” Assim, o caminho dos três passa por voltar para Portugal, só não sabem quando. “Principalmente gostávamos de voltar para que a minha filha viva a sua adolescência de uma forma que na Nigéria não é possível. Com liberdade, autonomia e opções de lazer, que aqui são limitadas.”