Sociedade

“A tecnologia não está a tornar-nos mais infelizes”

Miguel Ricou, psicólogo, é investigador do Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde
Miguel Ricou, psicólogo, é investigador do Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde
Rui Duarte Silva

As aplicações móveis de encontros estão mesmo a revolucionar a nossa vida afetiva e sexual? Miguel Ricou, psicólogo e investigador do Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde, explica que a mudança não é de agora e apenas responde à nossa necessidade permanente de conhecer mais pessoas. O amor (e o sexo) nos tempos do Tinder é o tema de capa da próxima edição da revista E do Expresso, mas lançamos já o tema no site do Expresso. “O amor eterno é que está em crise, não o romance e a importância do amor na vida das pessoas”

“A tecnologia não está a tornar-nos mais infelizes”

Nelson Marques

Jornalista

Chama-se Tinder e é como levar no bolso “um bar de solteiros aberto 24 horas por dia”. A mais escaldante aplicação de telemóveis do momento e outras semelhantes permitem-nos conhecer hoje num ano mais pessoas do que os nossos avós em toda a sua vida. Mas se temos tanta oferta, porque parecemos bloquear na hora de escolher? E haverá espaço para o amor na era das relações fast-food? O Expresso foi falar com o psicólogo Miguel Ricou, professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, para tentar perceber como é que a tecnologia estará a revolucionar a forma como nos relacionamos.

As aplicações de encontros como o Tinder e o Happn estão a moldar a forma como nos relacionamos?
A internet é um mundo em contínua evolução e é difícil ter respostas certas e absolutas. É importante refletir sobre se serão estas apps a moldar relacionamentos ou se elas respondem às necessidades que se foram construindo. Na verdade, vivemos num mundo onde tudo acontece cada vez mais depressa. Hoje, com o tipo de vida que desenvolvemos, temos uma enorme capacidade de conhecer pessoas, o nosso potencial de relacionamentos é enorme. No passado tínhamos dificuldade em viajar e por isso vivíamos em comunidades mais pequenas onde conhecíamos menos gente. Isso significava que tínhamos mais tempo para conhecer as pessoas de forma mais profunda e um menor potencial de novos relacionamentos. Hoje tudo é diferente. Podemos conhecer mais pessoas num ano do que em toda a vida dos nossos antepassados. Temos por isso menos tempo para as conhecer profundamente. A imagem torna-se cada vez mais importante e os relacionamentos tornam-se mais rápidos e menos baseados em características que visem a estabilidade. O prazer e a felicidade são valores máximos, a estabilidade e o investimento são menos importantes. Logo, não é necessário um conhecimento tão profundo que aumente a probabilidade de a relação ser durável.

As relações online tendem a ser mais íntimas do ponto de vista do conhecimento pessoal, pois as pessoas expõem-se mais facilmente online do que face a face


Temos mais oferta do que alguma vez tivemos e, porém, parece que estamos sempre à procura de algo melhor. É o “paradoxo da escolha”, de que fala o psicólogo Barry Schwartz.
Isso não vem da internet, vem da evolução social em função do respeito pela autonomia, pela liberdade individual. Vivemos na sociedade da escolha, em que as escolhas de cada um devem ser respeitadas. A internet e os smartphones vêm apenas aumentar o leque de escolhas, respondendo a essa necessidade e facilitando o contacto entre as pessoas. Procuram a escolha certa e esta cada vez menos existe, o que por vezes se torna difícil e angustiante. Mas isso não tem de ser uma coisa má, num mundo onde podemos com maior facilidade fazer mudanças.

Há quem diga que vivemos a era dos amores fast-food. O sexo tornou-se tão acessível como um hambúrguer do McDonald’s e há cada vez mais gente que opta por permanecer solteira. Temos mais dificuldade em assumir compromissos?
A sua questão parte de um preconceito de que a capacidade de amar tem de levar a um compromisso que terá de durar determinado tempo, possivelmente toda a vida. E isso tem mudado. Uma relação bem-sucedida hoje não é necessariamente uma relação que dure toda a vida. E mais uma vez esta mudança não está ligada primeiramente à internet. Aliás, os estudos não esclarecem ainda se as relações iniciadas online duram menos do que as tradicionais. Indicam que o surgimento da sensação de amor, ou paixão se quiser, é mais difícil porque a proximidade espacial e a atração física são fatores importantes e no online estão diminuídos. Mas as relações online tendem a ser mais íntimas do ponto de vista do conhecimento pessoal, pois as pessoas expõem-se mais facilmente online do que face a face. Por outro lado, as pessoas que usam muito essas apps de encontros parecem ter mais tendência a evitar o conflito, já que é mais fácil desligar dessas relações. Basta bloquear a pessoa em causa, pelo que evitam mais o conflito e não resolvem as diferenças. Pode haver a tendência de passar isso para as relações face a face, o que as vai tornar mais difíceis. Tenho problemas, vou-me embora...

A capa da revista do Expresso deste sábado

É possível que, ao contrário do que pensamos, toda esta tecnologia que temos ao nosso dispor nos esteja a tornar, afinal, mais infelizes?
O grau de satisfação das pessoas que buscam relações nesse sites e nessas apps não parece ser muito elevado, parece que o esforço de procura não é muito compensado. Procuram relações em que o investimento seja proporcional ao desfecho e este tipo de relações, ao contrário do que se possa pensar, dá muito trabalho para a compensação que gera. É preciso tentar muitas vezes e isso pode ser difícil. Depois, os tipos de características que podem procurar online não são aquelas que mais vão valorizar face a face. E parte-se ainda de uma falácia que é a de que existe a pessoa certa para nós, o que é mentira, já que as relações funcionam pelas nossas características, é claro, mas também por uma série de outras variáveis, contingenciais, sobre as quais temos pouco ou nenhum domínio. Estas apps estão feitas no pressuposto de que vamos encontrar a nossa alma gémea, o que evidentemente não existe. Mas não consigo sustentar a ideia de que a tecnologia, que nos facilita a vida em tantas coisas, nos esteja a tornar mais infelizes. O que está em causa é a sua má utilização. É preciso informar e formar as pessoas na sua utilização.

Rui Duarte Silva

Os nossos avós não se podiam dar ao luxo de procurar a alma gémea. Esse é um luxo das gerações mais recentes.
No passado não era possível haver divórcios, pois não havia contraceção fidedigna. As mulheres estavam muitas vezes grávidas e tinham muitos filhos, o que não lhes permitia trabalhar. Mãe e crianças ficavam dependentes do sustento por parte do pai. O divórcio não era possível, pois comprometeria a sustentabilidade das famílias. A lógica das relações era a estabilidade; casar por amor era quase um luxo e seguramente não era a característica mais importante. Importantes eram características que potenciassem a estabilidade. Com a libertação sexual da mulher (a contraceção química), esta ganhou controlo sobre a sua fertilidade. Logo, a natalidade diminuiu e a mulher começou a ter uma carreira e independência económica. Hoje, a estabilidade deixou de ser o fator mais importante e as pessoas começaram a casar e a estarem juntas por um único motivo: o idealismo do amor. E, por isso, se já não estão satisfeitas, é muito mais aceitável que possam mudar. Escolhem em função do que sentem e não tanto em função de fatores mais racionais que muitas vezes nem eram definidos pelos próprios mas sim pelas famílias.

O amor e o romance não estão, portanto, em crise?
Não, de forma alguma. Têm é formas diversas de serem vividos. O amor eterno é que se pode dizer que esteja em crise, mas não o romance e a importância do amor na vida das pessoas. Não é por sabermos que é mais difícil hoje que uma relação dure toda a vida que acreditamos menos nisso.

Leia a reportagem “Love me, Tinder” este sábado na revista E do Expresso

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: nmarques@expresso.impresa.pt

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