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Portugal tem menos estudantes a trabalhar do que a UE: país favorece pouco a acumulação de funções

Portugal tem menos estudantes a trabalhar do que a UE: país favorece pouco a acumulação de funções

Quase um terço dos estudantes da União Europeia trabalham. Em Portugal são menos: há trabalhos pouco adaptados aos estudantes, há instituições de ensino menos recetivas aos trabalhadores — mas a falta de autonomia dos jovens também está relacionada com um “traço cultural”

Arranjar um emprego de verão, trabalhar em part-time, aos fins de semana, ou mesmo a tempo inteiro. Há diferentes formas de os jovens ganharem algum dinheiro, ajudarem nas despesas em casa e terem experiências profissionais quando ainda estão a estudar. Esta é a realidade de quase um quarto dos jovens da União Europeia: 23% estudam e trabalham. Portugal está abaixo da média da UE: só cerca de 10% dos jovens entre os 15 e os 29 anos fazem as duas coisas ao mesmo tempo, segundo dados da Eurostat referentes a 2021.

É um “fenómeno muito português” começar o primeiro emprego só depois de terminar os estudos, enquanto “em países do norte e centro europeu é muito comum acumular o trabalho com a vida escolar a partir da maioridade”, nota Vítor Sérgio Ferreira, sociólogo e professor no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Olhando para a UE, os Países Baixos são de longe o Estado-membro com a maior fatia de estudantes trabalhadores (quase 70%), seguindo-se a Dinamarca (49%) e a Alemanha (42,4%).

Nestes países existem lugares tipicamente ocupados por estudantes, como os serviços de bar, esplanada e café. “São empregos muitas vezes temporários, ou feitos a meio tempo, dos quais os estudantes tiram o seu pocket money [dinheiro para o dia a dia]”, continua o investigador em Sociologia da Juventude. Mas “isto cá não acontece”, acrescenta. E não acontece porque “o mercado de trabalho em Portugal é pouco flexível”, o que acaba por favorecer pouco esta cumulatividade de funções.

Há trabalhos pouco adaptados aos estudantes. “Vê-se muita gente nova em centros comerciais, mas com turnos de trabalho completos. Não há aqueles horários reduzidos, de quatro horas, como noutros países”, diz ainda Vítor Ferreira. Além da pesada carga horária e da maior disponibilidade tipicamente exigida aos mais novos, também acontece algumas entidades empregadoras não facilitarem a obtenção do estatuto trabalhador-estudante, que ajuda a conciliar as duas coisas.

Mas também há instituições de ensino pouco recetivas aos trabalhadores, aponta João Caramelo, investigador no Centro de Investigação e Intervenção Educativas. “Num contexto em que as próprias faculdades estão muito pressionadas com os resultados e com a eficiência do trabalho formativo que desenvolvem”, há professores que entendem os trabalhadores-estudantes como um “atrito”, no sentido em que “vão precisar de mais apoio”. “A relação estudo-trabalho nem sempre é muito flexível”, reconhece.

Menor autonomia: uma questão “cultural”

Quase 3% dos portugueses entre os 15 e os 29 anos estão à procura de emprego e disponíveis para começar a trabalhar (ou seja, desempregados) — valor que, neste caso, é praticamente igual à média europeia. Em contraste, a maior percentagem de jovens desempregados encontra-se na Suécia (14%), Finlândia (9%) e Países Baixos (7%). Na realidade, em Portugal, a esmagadora maioria das camadas mais novas da população (86,9%) estão fora da força de trabalho, ou seja, não estão sequer à procura de emprego.

“Há países onde a autonomização dos jovens relativamente às suas famílias acontece mais precocemente do que em Portugal”, corrobora João Caramelo, também professor na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. Na verdade, “temos tido um prolongamento da dependência dos jovens face às famílias”, o que bate certo com outra estatística: Portugal é o país da UE onde os filhos saem mais tarde de casa dos pais, com 33,6 anos, em média.

A decisão de acumular o trabalho com o estudo é muito marcada pela origem social dos jovens. Muitos procuram empregos que não colidam com as aulas para apoiarem as famílias e, às vezes, para eles próprios poderem continuar a estudar. Os dados do Eurostat não permitem, mas “se fizéssemos uma análise desses 10,3% [de estudantes trabalhadores portugueses], com certeza haveria diferenças significativas na origem social”, assegura o investigador João Caramelo.

A menor autonomia dos jovens está ainda relacionada com um “traço cultural”. Há pais a investir muito na escolarização dos filhos que, em muitos casos, são a primeira geração da família a frequentar o ensino superior. “Têm uma atitude defensiva quanto à entrada dos filhos no mercado de trabalho, continuam ainda a ver como uma transição que implica a saída da escola”, enquadra Vítor Sérgio Ferreira. E em alguns casos pode até haver uma certa vergonha que vem ainda “do imaginário do trabalho infantil durante o Salazarismo”.

Ainda assim, o número de jovens portugueses a estudar e a trabalhar deve aumentar no futuro, preveem os dois investigadores. Por um lado, porque o sentido protetor e o espírito de sacrifício dos pais eventualmente vai mudar. Por outro, porque os estudantes vão ficando cada vez mais despertos para as vantagens das experiências profissionais precoces. Essa é, aliás, uma competência cada vez mais valorizada no mercado de trabalho, juntamente com as soft skills, desde a responsabilidade à disciplina.

Os Países Baixos são o Estado-membro com a maior fatia de estudantes trabalhadores (69,8%), seguindo-se a Dinamarca (49%) e a Alemanha (42,4%). Portugal está bem longe destes valores (10,3%)

Elas estudam mais, eles trabalham mais

As diferenças entre géneros são evidentes: a percentagem de raparigas a estudar é superior à dos rapazes, especialmente no grupo dos 20 aos 24 anos (54% contra 45%). Já o número de homens que não estudam mas trabalham tende a ser mais elevado do que o número de mulheres, sobretudo nas idades compreendidas entre os 25-29 (70% vs. 62%). Estes resultados vão ao encontro da “cultura de género” no abandono escolar e da “feminização” do ensino superior.

É um “fenómeno que vamos conhecendo já há duas décadas”, diz João Caramelo. As raparigas atribuem um valor acrescido à educação e formação, dando muita importância à “aquisição de capital académico mais elevado”. Além disso, complementa Vítor Ferreira, “o abandono escolar sempre foi muito mais masculino do que feminino”, o que também tem a ver com as características do mercado de trabalho juvenil — os setores mais recetivos a uma mão-de-obra desqualificada tradicionalmente são masculinizados, explica o sociólogo.

“Estamos a falar de culturas masculinas juvenis de classes sociais mais desfavorecidas que tendem a desvalorizar a escola e a valorizar o trabalho”. Mas aqui o emprego não é um grito de emancipação, tampouco um marcador de entrada na vida adulta. Funciona antes como um “fator de integração”, finaliza o investigador: “Muitas vezes esses jovens, quando abandonam a escola cedo, fazem-no para ganhar dinheiro para conseguir comprar as suas sapatilhas, a sua roupa de marca, enfim — os seus apetrechos juvenis”.

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