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“Atração Fatal” estreia-se numa nova versão: agora é uma série e ficou politicamente (bastante mais) correta

Dan Gallagher (Joshua Jackson) e Alex Forrest (Lizzy Caplan) são protagonistas deste thriller dramático em oito episódios
Dan Gallagher (Joshua Jackson) e Alex Forrest (Lizzy Caplan) são protagonistas deste thriller dramático em oito episódios

A estreia da série “Atração Fatal” na SkyShowtime vem lembrar-nos um filme que fez furor há mais de 30 anos. O título mantém-se, mas a produção é muito diferente

Nomeado para seis Óscares (entre o quais o de Melhor Filme), embora não tenha ganhado nenhum, grande êxito nas bilheteiras de todo o mundo, “Atração Fatal”, de Adrian Lyne (1987), marcou uma época. Era a história de Dan, um homem casado (e com um casamento feliz) que tem um caso pontual de fim de semana com uma mulher (Alex). Ambos parecem maduros e a convir uma efemeridade sem consequências, mas ela não parece de acordo — e começa um processo de assédio, perseguição, invasão de intimidade e violência, quer em relação a ele, quer à sua família, mulher e filha. Em última instância, o conflito evolui, por fim, para uma competição entre duas mulheres — a legítima e a amante — pela posse de um homem.

O filme situa-se, historicamente, no termo de uma era de grande liberdade sexual (freada pela pandemia da sida, na segunda metade da década de 80) e de progressiva afirmação feminina quanto à escolha de parceiros de que Alex será uma espécie de paradigma. Na sequência capital para a sedução, durante uma festa, ela não é flor à espera de ser colhida, ela decide, primeiro pela recusa vigorosa de um macho que a não merece — olhar mortal de Glenn Close sobre o pretendente —, depois pelo sorriso ao eleito (Michael Douglas, senhor de si). E é Alex — nome com induções másculas, nada por acaso — quem acaba por desencadear a paixão inflamada. A narrativa quase se poderia intitular como aviso aos homens bem casados que se deixam desencaminhar pela voluptuosidade de outras mulheres, já que elas podem esconder, sob o impulso erótico, uma identidade de górgona (o cabelo que puseram em Glenn Close, espampanantes caracóis, para aí aponta), tudo edificado de um ponto de vista marcadamente masculino. Dan é uma vítima, Alex uma harpia.

As feministas não ficaram quedas diante de um filme que virava os pratos da balança. Para os anais, ficou célebre, na “New Yorker”, o texto de Pauline Kael — uma das grandes vozes da crítica de cinema americana dos anos 60/70/80 — denunciando o filme como uma coisa de homens que vêm as mulheres como bruxas. Pelo menos aquela, já que Beth (Ann Archer), a esposa de Dan, é uma santa. Resoluta — é ela quem dispara o tiro terminal e salva o marido da faca de cozinha ávida de sangue — mas santa, sem sombra de dúvida. Aceita Dan de regresso ao lar, o filme reconstitui o ideal da família depois do tumulto. Tudo volta ao normal, à fidelidade, ao redil.

Os argumentistas pegaram nos traços gerais do filme escrito por James Dearden e deram-lhe uma enorme volta. Na realidade, aproveitaram a situação e alteraram tudo o resto

Pelo menos nisso, é muito diferente a série que a Paramount agora produziu e a plataforma de streaming SkyShowtime difunde a partir desta segunda-feria, 22 de maio. Os argumentistas Kevin J. Hynes e Alexandra Cunningham pegaram nos traços gerais do filme escrito por James Dearden e deram-lhe uma enorme volta. Na realidade — a avaliar pelos três primeiros episódios disponibilizados para visionamento de imprensa — aproveitaram a situação e alteraram tudo o resto. Desde logo, mudaram o estatuto profissional dos protagonistas — Alex não está agora ao mesmo nível que Dan mas num patamar inferior — e criaram um devir para o caso nos antípodas do que Dearden inventara. Creio não gorar expectativas — até porque se sabe logo no início do primeiro episódio — se disser que, na série, Dan foi preso e condenado após a morte de Alex. A mulher abandonou-o, casou com outro, ele nunca mais viu a filha (entretanto tornada mulher), não houve nem reconciliação nem cumplicidade na ultrapassagem do horror.

Quando a série começa, ele está em tribunal, numa audiência para concessão de liberdade condicional. A narrativa é conduzida em dois tempos, no passado, onde a história de sedução e assédio acontece, e no presente, onde Dan vai tentar provar que está inocente, que não matou Alex, ao mesmo tempo que procura construir uma relação afetiva com a filha. Cria-se, assim, um acicate de whodunnit e uma busca de sentimentos, a temperar o caso de adultério e perseguição. E mesmo este parece flamejar bem menos. No primeiro amplexo, sob a imperiosidade do desejo e a febre de o saciar, Dan possuía Alex no lava-louças da cozinha, com a água a irromper da torneira e Alex a ir buscá-la com a mão para a espalhar nos corpos; a água seria, aliás, um dos elementos recorrentes do filme, no romance, no sexo, na vingança e na morte. E quando ele faz a primeira tentativa de se ir embora e ela se tenta suicidar, a cena é de peso: ela vem da casa de banho, leva as mãos ao rosto do homem para o agarrar e escorre sangue. Alex cortou os pulsos, nada menos. Adrian Lyne era um realizador que gostava de excessos e “Atração Fatal” dava-se bem com isso. Na série é tudo mais prosaico, pouco exuberante. Não há arrebatamentos, o desejo é sem transbordos e até o suicídio — com comprimidos, agora — verifica-se ser uma simulação.

O que aconteceu é apenas uma questão de moderação de linguagem, de limar arestas vivas? Aconteceram 30 anos e, sobretudo, aconteceu que uma ficção como a do filme, hoje em dia, seria tão politicamente incorreta que se tornaria impossível de produzir sem agastadíssimas reações — a última coisa que a Paramount quer dos seus assinantes de streaming. Não faltaria quem viesse lembrar que a larga maioria dos agressores são homens e que é insultuoso pôr em ficção uma mulher como a Alex de Glenn Close. Teremos, assim, uma versão em que a parte masculina é menos inocente e a feminina menos persecutória e em que ambos os parceiros têm razões — traumas, solidões, desilusões — para o lance em que se envolveram (no filme, lembremos, o gesto é, sobretudo, recreativo, dois adultos que viram uma oportunidade e a aproveitaram). Temos ainda que, na série, Alex é alguém que trabalha com vítimas de violência, modo de introduzir o tema lembrando que são as mulheres quem mais sofrem numa relação historicamente desigual. Em “Atração Fatal”, culpa e castigo não pendem só para um dos lados da balança, estão em partilha.

Resta a pergunta: quem matou Alex Forrest? Uma investigação a conduzir a nossa atenção durante oito episódios.

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