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“Diziam que era a cidade do futuro”: documentário dentro do cerco a Mariupol mostra como a guerra na Ucrânia hipotecou o amanhã

A apresentadora de televisão Alevtina Shvetsova, aqui com o filho Glib Shvetsov, é um dos rostos do documentário
A apresentadora de televisão Alevtina Shvetsova, aqui com o filho Glib Shvetsov, é um dos rostos do documentário

A perspetiva de quem sobreviveu à destruição da cidade ucraniana, quando todos os jornalistas já tinham partido, chega à televisão com a chancela da Panorama BBC. O documentário alargado estreia-se esta segunda-feira pelas 22h, no TVCine Edition

Quando os dois últimos jornalistas da Associated Press deixaram Mariupol, a 11 de março de 2022, a cidade ucraniana ficou às escuras, apagados os holofotes da imprensa internacional, sem olhos no terreno para reportar o cerco russo à cidade portuária e a resistência dos que ficaram. Mariupol ia ser conquistada desse por onde desse, nem que para isso tivesse de ser reduzida a escombros, uma bomba de cada vez. Durante mais de dois meses, os bombardeamentos foram diários, destruindo uma cidade de 430 mil habitantes e matando cerca de 25 mil pessoas, segundo as autoridades ucranianas.

“Cada guerra tem a sua própria geografia”, conta ao Expresso Hillary Andersson — veterana repórter norte-americana da BBC —, para quem depressa se tornou evidente, no início de março, que Mariupol seria o epicentro desta. “Também se tornou evidente que quase não havia informação a sair de lá, mas que, ainda assim, surgiam sinais de que estaria a acontecer uma catástrofe humanitária da qual o mundo tinha apenas um pequeno vislumbre”, acrescenta a também produtora de documentários. O seu filme mais recente, “Mariupol, The People’s Story”, com a chancela Panorama BBC, mostra a história do cerco de dentro para fora, a partir — e exclusivamente — da perspetiva de residentes de Mariupol, desde os primeiros bombardeamentos à queda da cidade em mãos russas, sem esquecer o último reduto formado pelos resistentes na fábrica metalúrgica Azovstal (estreia-se esta segunda-feira pelas 22h, no TVCine Edition).

“A ideia central é que a guerra estava a ser filmada de fora para dentro, por repórteres estrangeiros com os seus guiões a tentar explicar o que se estava a passar: aqui está uma imagem de um tanque, ali caíram bombas, eis um prédio em chamas; depois junta-se um soundbyte de alguém a comentar a guerra, para termos o elemento humano, e está feito”, explica Hillary com o enfado de quem já o viveu nos conflitos que cobriu para a BBC, como a Segunda Intifada palestiniana ou a guerra civil em Moçambique.

O documentário, que vai ser exibido numa versão alargada de 90 minutos, começa por mostrar a cidade antes da guerra, quase indistinguível de outras cidades europeias, com festas, jardins, cafés de brunch — “diziam que era a cidade do futuro” —, para muito rapidamente descer sobre a vida tornada impossível sob os ataques constantes. Todo o filme é contado na perspetiva dos sobreviventes com o auxílio de pequenas filmagens e diários-vídeo que a equipa de Hillary conseguiu recuperar nos meses que se seguiram à conquista russa.

“Quase não havia informação, mas surgiam sinais de que estaria a acontecer uma catástrofe humanitária”,recorda a realizadora Hillary Andersson

Uma das imagens que ficou gravada na memória coletiva nesse início de guerra foi a da grávida ensanguentada a ser levada de maca para o hospital depois de a maternidade em que se encontrava ter sido atacada. Mulher e bebé não sobreviveram. Conhecemos essa história porque os dois jornalistas da Associated Press — Chernov Mstyslav e Evgeny Maloletka — a filmaram e fotografaram antes de serem evacuados. No documentário, este é o momento de passagem de testemunho, quando uma das entrevistadas, a médica Oksana, relata o que sentiu quando a grávida lhe apareceu no hospital e quando percebeu que não seria possível salvá-la.

As imagens são fortes e os relatos aterradores. Como o de Olga, que ouviu o marido, que clamava por ajuda, silenciar-se debaixo dos destroços que também a prendiam. Nas infindáveis horas até ser resgatada Olga chega a cortar os pulsos, mas mal: o sangue coagulou. Ou a história de Hanna e o seu bebé, que estiveram mais de dois meses sem ver o sol, escondidos nos túneis subterrâneos do complexo de Azovstal, enquanto o marido, Kyrilo, integrava as fileiras do regimento de Azov na defesa de Mariupol.

A única altura em que vemos Alevtina a sorrir é quando conta como, depois de fugir a pé com o marido e o filho, conseguiu voltar de carro para resgatar os pais. A tensão permanente em quem conta as suas histórias e fala sobre quem nunca aparece — o que faz pensar que já não estarão cá, o que nalguns casos se confirmou, noutros não — aliado ao cuidado em traçar arcos narrativos individuais é o que distingue “Mariupol, The People’s Story”.

Algumas das entrevistas foram de sete e oito horas, aparadas até à forma em que aparecem no filme. “O meu trabalho foi dar-lhes espaço, porque se a ideia era contar a história da guerra de dentro para fora, então queria que este filme entrasse tão fundo quanto possível nas experiências das pessoas”, diz a produtora. “Que não fosse apenas alguém a contar que lhe aconteceu isto e aquilo e que depois fugiu, mas saber o que lhe aconteceu emocionalmente. Estavam apaixonados antes da guerra? O que aconteceu ao parceiro? E aos filhos? Por outras palavras, num nível muito profundo, íntimo e pessoal, como foi experienciar o poder militar russo a dizimar a tua cidade?”

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