
Não é só um filme biográfico sobre o mais célebre opositor a Putin. É a história de um homem que, após escapar por um triz a uma tentativa de assassínio, se insurgiu contra os altos poderes do seu país
Não é só um filme biográfico sobre o mais célebre opositor a Putin. É a história de um homem que, após escapar por um triz a uma tentativa de assassínio, se insurgiu contra os altos poderes do seu país
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Este filme sobre Alexei Navalny, adaptando a metodologia do documentário, começa curiosamente como um thriller de espionagem, acompanhando a equipa de investigadores que procurou e conseguiu desmascarar a tentativa de assassínio (por envenenamento) daquele político russo. A história do filme é coisa de fazer abrir a boca de espanto — e tanto mais por ser verdade. Se muitos analistas políticos falam hoje (desde que a guerra rebentou na Ucrânia) da ineficácia e da falta de preparação das forças armadas russas no terreno face ao que era esperado, então o que dizer dos serviços secretos do país que, graças a este documentário do norte-americano Daniel Roher, mostram andar pelas ruas da amargura?
É que em “Navalny” — pasme-se! — assistimos ao telefonema em que o próprio, fingindo-se passar por quem não é, faz ao agente secreto que lhe colocou o venenoso pó Novichok nas calças — e o pateta agente russo, que nem tonto enganado do lado de lá da linha, confirma tudo, tim-tim por tim-tim, julgando estar a falar não com o homem que envenenou mas com uma alta patente! Oh, que miséria indigna do legado de Khrushchov e Brejnev, capaz de fazer Estaline dar voltas no túmulo! É um momento extraordinário sobre o absurdo e o embaraço em que tombou o regime de Putin, episódio merecedor de deportação sumária para a Sibéria (à boa maneira soviética!), simplesmente vergonhoso para quem está a dar ordens no todo-poderoso Kremlin. É claro que Daniel Roher quer puxar por valores humanamente mais elevados, apresentando a figura do título como um herói corajoso que se bate contra o totalitarismo, em nome de algo que a Rússia — em boa verdade — nunca provou em séculos e séculos de história: democracia. E, contudo, é pelo “let’s make a thriller out of this” (as palavras são de Navalny) que vamos seguindo o fio à meada. Navalny, inclusivamente, goza com a sua própria mortalidade naquela Alemanha campestre em que convalesceu a convite da então chanceler Angela Merkel, isto é: estamos perante alguém que está a levar muito a sério o que faz sem que o filme abdique de um tom de brincadeira — coisa que assenta bem ao escapismo das plataformas de streaming que, como se sabe, não querem cá nada de desesperos...
“Navalny” está naturalmente condicionado a uma compreensível empatia pela figura homenageada, pouco comprometida ideologicamente — embora o filme consiga tocar de raspão numa alegada aliança dele com a extrema-direita. De qualquer forma, Navalny é um homem do seu tempo, manobrando com eficácia e prazer as armas e os escudos que tem ao seu dispor, em especial os das redes sociais. Este aspeto é muito curioso porque quando este documentário se estreou, em janeiro de 2022, no Festival de Sundance, ainda ‘ninguém sabia’ quem era Volodymyr Zelensky. E também Zelensky se popularizou pelo uso que soube dar aos novos sistemas de comunicação. Às tantas — e sabendo o espectador o que sabe hoje — também se pergunta se Navalny, tal como o Presidente ucraniano, não sobrestimou a suposta proteção das redes sociais. Deixou-se ele levar pelo fascínio dessa fama passageira, no fundo um castelo de areia à beira do mar?
Agora, face a uma guerra imprevisível na Ucrânia, sem fim à vista, e com Navalny encarcerado sabe-se lá até quando e em que circunstâncias (as últimas notícias recebidas por Twitter neste mês de junho, nada animadoras, falam da transferência para uma cadeia associada com agressões e torturas), é bem provável que o maior opositor a Putin esteja arrependido de ter voltado à Rússia. Do nosso lado perguntamo-nos se não teria sido mais eficaz da parte dele ter montado uma estrutura de resistência a partir do estrangeiro, com o apoio, por exemplo, da pequena mas eficaz equipa que ele mostra ter tido ao seu redor no último semestre de 2020.
Navalny contava certamente com muitas dificuldades no seu regresso à pátria quando apanhou aquele avião para Moscovo a 17 de janeiro de 2021. Foi imediatamente detido à chegada ao aeroporto (como aliás este filme documenta) sem se mostrar surpreendido pelo ocorrido. Ainda assim, confiou que podia ser mais útil ao seu país em solo russo. Confiou (ele que é advogado de formação) que a justiça poderia prevalecer — num regresso que teve tanto de romantismo como de ingenuidade política. O que Navalny não contava era com um choque com a realidade tão brutal como aquele que sucedeu pouco mais de um ano após a sua chegada à Rússia — o choque da invasão à vizinha Ucrânia do dia 24 de fevereiro deste ano. Se antes houve motivos propícios para uma ideia de thriller, a história tratou de a contornar. De certa forma, “Navalny”, estreado nos primeiros dias de 2022 e agora disponível na HBO Max, é um filme de ‘ontem’ que o ‘hoje’ tornou tragicamente obsoleto.
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