9 outubro 2022 9:12

David Lovering, Black Francis, Paz Lenchantin e Joey Santiago, membros dos Pixies
“Doggerel” é o oitavo álbum dos Pixies, quarto nesta sua segunda vida. Os ingredientes não se alteraram, a frescura sim
9 outubro 2022 9:12
Entre 1998 e 1991, os Pixies lançaram quatro discos que ajudaram a construir o rock independente norte-americano. À razão de um álbum por ano, desenharam também a sua trajetória, tão incandescente como efémera, antes de fazerem as contas e fecharem a loja (a terminologia é burocrática, mas o adeus também o foi: em 1993, o final da banda foi anunciado pelo seu timoneiro, Black Francis, em entrevista à BBC Radio, e só mais tarde os restantes músicos tomariam conhecimento da sua nova situação laboral — o guitarrista Joey Santiago através de um telefonema, a baixista Kim Deal e o baterista David Lovering por fax). Entre este ponto final pouco parágrafo e o regresso aos palcos, em 2004, passou-se um pouco mais de uma década: tempo suficiente, portanto, para discos como “Surfer Rosa” ou “Doolittle” terem fermentado tanto na nostalgia de quem os conheceu em tempo real como na imaginação de quem não teve oportunidade de viver na altura em que os Pixies lançavam um álbum por ano.
Durante uma década, esta ressurreição nos palcos teve como único combustível o fortíssimo e longevo catálogo do grupo; além do ‘apadrinhamento’ de Kurt Cobain, que nunca deixou de manifestar a sua paixão pelo quarteto de Boston, outros fenómenos terão feito com que a banda se tenha mantido presente no imaginário coletivo durante o pousio de 11 anos (lembramo-nos, por exemplo, da cena final do filme “Clube de Combate” ao som de ‘Where Is My Mind?’). Se o regresso aos concertos não abanou as estruturas das salas que os receberam, como reza a lenda que terá sucedido no dia de Santo António de 1991, no Coliseu de Lisboa, essas primeiras digressões post mortem também não fizeram grande mossa na reputação de Black Francis e companhia, que se têm mantido na estrada desde então (em Portugal, entre concertos de sala e festivais, já lá vão nove espetáculos desde o ano da reunião — e regressarão a Lisboa em 2023, para tocarem no Campo Pequeno). As regras do jogo alteraram-se em 2014. Um ano depois da saída de Kim Deal do seu posto como baixista e peça da história da banda, os Pixies voltaram a gravar. “Indie Cindy”, em 2014, inaugurou a discografia da segunda vida dos norte-americanos, que começaram por substituir Deal por Kim Shattuck, contratando em 2014 Paz Lechantin para o cargo. Ainda que sem o ritmo editorial que os animava há coisa de 30 anos, e certamente sem causar o mesmo frenesim junto dos fãs, continuaram a lançar discos, concretizando mesmo um feito algo impensável há uns anos: “Doggerel”, o álbum apresentado no final de setembro, é o quarto longa-duração desde o regresso, ou seja, em 2022 os Pixies têm tantos discos lançados no pós-reforma como nos seus verdes anos. Gravado num estúdio amigo do ambiente no estado do Vermont, o sucessor de “Beneath the Eyrie” (2019) não envergonha os pergaminhos de uma das bandas mais influentes do indie tal como hoje o conhecemos. Segundo Joey Santiago, que é guitarrista desde o primeiro dia mas que se estreia, em “Doggerel”, a escrever uma canção, os temas cresceram — literalmente, tornando-se mais longos —, mantendo as reviengas típicas dos Pixies. Na canção que ajudou a escrever, ‘Dregs of the Wine’, há uma influência dos The Who, assumida pelo próprio Black Francis, que em comunicado disse ter procurado uma sonoridade “maior, mais ousada e mais orquestrada. Adoro tocar aquelas coisas mais apunkalhadas, mas não dá para criar esse tipo de cena artificialmente”. O que também é complicado de replicar é, nesta altura do campeonato, a sensação de novidade. Em “Doggerel”, várias canções esticam a cabeça, destacando-se ou por serem belos temas rock, prometendo fazer brilharete ao vivo (‘Nomatterday’), ou pelo tempero surf rock que nunca foi estranho à banda (‘Vault of Heaven’, ‘Who’s More Sorry Now?’), ou pela contagiante doçura de ‘Haunted House’, que Black Francis diz ser uma espécie de pastiche da pop dos anos 60, ‘The Lord Has Come Back Today’ ou ‘Pagan Man’ (algo reminiscente de ‘Have You Ever Seen The Rain’, dos Creedence Clearwater Revival’; já ‘There’s a Moon On’ leva-nos para ‘Gone Baby Gone’, dos Violent Femmes). Ainda que faça parte da ‘família’ há menos de dez anos, Paz Lechantin cumpre a responsabilidade de levar o baixo mais alto, e as letras de Black Francis continuam a transportar alguma bem-vinda estranheza. Em entrevista ao site Consequence of Sound, a voz dos Pixies explica que tenta que as suas palavras sejam abertas à interpretação e dotadas de universalidade, o que rende frutos curiosos. “Na canção ‘Thunder and Lightning’, um dos versos diz algo como ‘They started a war today in another land/ Everything went the way that it all was planned’. Ora, eu escrevi essa canção em dezembro do ano passado. Não estava a pensar: ‘os russos vão invadir a Ucrânia.’ Mas claro que, quando fomos gravar o disco, essa era a história do momento. Então parece que a escrevi naquele momento, mas não. Só a mantive suficientemente aberta, para não ficar presa ao calendário.” Na mesma entrevista, Black Francis — que nasceu Charles Michael Kittridge Thompson IV e, a solo, assina Frank Black — é friamente realista quanto à motivação de continuar a fazer música nova. Lembrando os primeiros anos da banda, em que os seus companheiros tinham de ter empregos “em armazéns ou a descarregar camiões” para, nos tempos livres, tentarem a sorte no rock, chama a atenção para uma evidência: há muito que os Pixies fazem da música o seu ganha-pão. “Então temos de fazer discos, porque temos de andar em digressão. Vender umas t-shirts, dar uns concertos, dizer que ainda estamos vivos.” Não é a visão mais romântica, mas faz sentido vinda de alguém que, à mesma publicação, compara o estilo de composição dos Pixies a “fazer uma sanduíche. É assim que pensamos na música pop: encaixar blocos que depois podemos arrumar de formas diferentes”. E a verdade é que a receita de “Doggerel” contém todos os ingredientes da sanduíche Pixies, dos coros saborosos ao baixo descarado, passando pela voz inconfundível de Black Francis. Só falta mesmo a frescura, pecadilho compreensível numa banda que foi ‘descongelada’ há 18 anos.