22 maio 2022 10:14

Kendrick Lamar
Não é uma América bonita, mas alguém tem que lhe dar voz. E Kendrick assume essa dor com nobreza num álbum difícil, complexo e necessário
22 maio 2022 10:14
Bob Dylan tem um Nobel. Kendrick Lamar tem um Pulitzer. Essas distinções sublinham a capacidade que ambos partilham de, a partir de diferentes ângulos culturais, pintarem em canção vastos murais da América das últimas cinco ou seis décadas. Esta América. A de Kennedy, de Obama, de Trump e de Biden.
Do Watergate, do 11 de Setembro, do #BlackLivesMatter e da pandemia. Casa dos bravos e terra da liberdade, segundo dizem. No seu quinto álbum de originais, “Mr. Morale & The Big Steppers”, primeiro novo trabalho de fôlego desde “DAMN” (2017), Kendrick rima sobre a imagem que vê refletida no espelho, dispensa filtros poéticos e procura soar tão honesto quanto possível. E embora se dê ao trabalho de recusar o papel de messias — a capa mostra-o com coroa de espinhos na cabeça, criança ao colo e arma à cintura... —, o rapper não enjeita o fardo de ser voz de uma comunidade e rima sobre a sua cultura específica: há relatos de violência doméstica, de abuso, de transfobia, de infidelidade, menciona-se depressão, terapia e lutas longas na direção da superação. A família é o centro do seu mundo e essa é a grande verdade que o álbum expõe. Para tal, Kendrick reuniu vasta equipa de produtores de elite, dispensou fogo de artifício sónico em favor de um regresso ao groove mais elementar e sobre cordas e pianos faz desfilar um conjunto de flows que o reafirmam como mestre da arte que escolheu para se expressar. E à sua volta há uma série de convidados: uns serão referências que funcionam quase como troféus, como Ghostface Killah, dos Wu-Tang Clan, ou Beth Gibbons, dos Portishead; outros, como Kodak Black, rapper que já enfrentou acusações de violência sexual e que esteve múltiplas vezes preso, serão a representação direta da tal cultura problemática da América negra que Kendrick aqui retrata. Não é uma América bonita, esta. Mas alguém tem que lhe dar voz. E Kendrick assume essa dor com nobreza num álbum difícil, complexo e absolutamente necessário. / Rui Miguel Abreu