Em ‘Ter Sorte’, a penúltima destas nove histórias, uma família é vítima da sua boa fortuna, entendida como afronta numa terra de grandes azares. Findo o horror da guerra, os vizinhos e conterrâneos começam a aterrorizar, um a um, os elementos da família (e, no fim, a própria casa), numa espécie de despeito coletivo por estes haverem sido inexplicavelmente poupados aos danos, ruínas e violências maiores. “Era uma coisa de difícil digestão, o espetáculo dessa leviana sobrevivência alheia, algo francamente indevido, ilegítimo; e o facto de não se deslindar ali uma falta facilmente reconhecível e mencionável apenas burilava o ódio.” Em apenas cinco páginas — lapidares, brutais, com ímpeto demiúrgico — ergue-se e desfaz-se um mundo, ou talvez uma metáfora da História. Porque, no fim, as diferenças entre afortunados e desafortunados acabam sempre por esbater-se: “o tempo derrocou e submergiu todos, sem exceção.”
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