25 março 2023 8:30

Louis-Ferdinand Céline (1894-1961) foi controverso: antissemita furibundo, elogiado pelos comunistas e depois colaboracionista com o ocupante nazi G
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Em “Morte a Crédito”, as pessoas não dizem coisas, bradam, berram, vociferam. É Céline na primeira pessoa e a desatar o segundo romance, escrito em 1936
25 março 2023 8:30
Céline é o anti-Proust. Ao judeu mundano, homossexual, sofisticado, ‘dreyfusard’ amigo de alguns nacionalistas de direita, opõe-se um Céline demótico, grosseiro, médico dos desgraçados, antissemita furibundo, elogiado pelos comunistas e depois colaboracionista com o ocupante nazi. “Viagem ao Fim da Noite” (1932) ainda alimentou umas certas dúvidas políticas e estilísticas, mas o mesmo não aconteceu com “Morte a Crédito” (1936). Céline, ficava então claro, estava contra a sociedade burguesa, sem estar a favor da revolução socialista. Era um anarco-niilista, um pessimista radical quanto à condição humana. Também a prosa, neste segundo romance, acentuava uma diferença e uma recusa: os blocos de texto (não há partes, nem capítulos) acompanham um narrador na primeira pessoa, mas os diálogos, e sobretudo os solilóquios, autonomizam-se, em vagas de entusiasmos e injúrias, mudanças de tom, e isso justifica que os sinais de pontuação mais usados sejam as reticências e as exclamações, porque as frases, sincopadas, não acabam, encavalgam-se, as pessoas não dizem coisas, bradam, berram, vociferam, e logo se arrependem ou contradizem.
A haver uma linhagem céliniana na literatura francesa, ela vem de Rabelais, o frade desbragado, ou de Sade e Zola, mas sem os respectivos cadernos de encargos. Uma escola ‘vulgar’, mas cheia de verve, que teve entre os seus continuadores imediatos o primeiro Sartre (a quem Céline chamará “ténia”). Trata-se, numa palavra, de uma literatura desagradável. E isso, tanto ou mais do que os abomináveis panfletos políticos dos anos 37-41, a começar por “Bagatelles pour un massacre”, fará com que recusemos ou aceitemos, logo às primeiras páginas, esta estética, este temperamento. O que não nos autoriza, no entanto, a tomar tudo à letra, a confundir os planos ou a cronologia. “Morte a Crédito”, não admitindo já uma leitura ‘de esquerda’, como a “Viagem”, ainda não é politicamente ‘fascista’, como os romances do pós-guerra, aliás admiráveis, “De Castelo em Castelo” (1957), “Norte” (1960), “Rigodon” (póstumo, 1969). Por outro lado, os biógrafos demonstraram que neste livro a matéria autobiográfica foi submetida a um exagero extremo, e que o exagero resgata até as passagens mais grotescas ou repugnantes, porque todo o excesso é também um gag, uma farsa.