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Nem utópico nem distópico: João Reis e a ficção sobre o presságio de um Portugal inexistente

28 agosto 2022 19:14

Luísa Mellid-Franco

João Reis

“Cadernos da Água”, o quinto romance de João Reis, passa-se num tempo imaginado entre a IV República Portuguesa e uma união ibérica engolida pela guerra

28 agosto 2022 19:14

Luísa Mellid-Franco

Não classificaria o quinto romance de João Reis uma distopia, mas também não o considero utópico, uma vez que o lugar e o tempo narrados estão absolutamente identificados e identificáveis, mas antes uma projeção extremada de um mundo que não nos é desconhecido. As circunstâncias também se anunciam sob o mote “Salve-se: Poupe água”, regularmente inscrito numa epígrafe final em comunicados e circulares oficiais, o que nos soa familiar.

Está, pois, tudo no seu lugar, e não é a trágica escassez de água a nível global, nem os comportamentos-limite que a qualidade de refugiadas da narradora (Sara) e da filha (Mariana) permitem, o elemento constitutivo nem os escopos desta magnífica história, antes a natureza humana em toda a sua crueza e esplendor. Construído ao longo de uma extensa descrição que acomoda a teia do romance, lê-se como uma carta escrita sem outra resposta senão a da esperança de que um avião civil traga o destinatário ao seu encontro, Sara escreve o dia a dia no campo de refugiados sem outro intermediário que não seja a folha de papel e o arranhar sobre ele, em discurso direto, ao marido (Emanuel) que ficou para trás por falta de meios. Ao lê-lo, e ao reconhecer alternadamente a voz e a vida do putativo destinatário do outro lado do silêncio, ninguém consegue ficar indiferente à força da escrita de Reis que pressagia um Portugal praticamente inexistente — que se vai intitulando desde IV República Portuguesa a Governo Interino da República Portuguesa e se dilui no caos de uma união ibérica engolida por uma bacia mediterrânica em guerra pelo domínio dos recursos hídricos (na ficção “Guerras Meridionais da Água” e um enigmático “Primeiro Evento”). A fuga aventurosa de Sara e Mariana dá-se após um “Segundo Evento”, que se supõe poder ter sido uma pandemia de “rex-virus 3”, agravada pela circunstância de os países do Norte da Europa terem resolvido fechar as fronteiras e o apoio financeiro. / Luísa Mellid-Franco