Enquanto investigava alguns papéis inéditos, ainda na posse dos herdeiros de Fernando Pessoa, Richard Zenith deparou com uma carta de quatro páginas, datada de “Londres, 26 de fevereiro de 1906” e enviada ao poeta por um amigo que ele conhecia dos tempos de Durban. Ao estudar a passagem de Pessoa pela África do Sul, que ocupou parte considerável da sua infância e adolescência, o estudioso construíra a imagem de um jovem introvertido e pouco sociável, mas a missiva que tinha nas mãos contava uma história diferente. Segundo o interlocutor londrino, eram vários os amigos que o recordavam como um membro do grupo particularmente brincalhão e assertivo. Ainda perplexo, Zenith pôs-se a decifrar a assinatura que rematava a carta e só então se fez luz. A pessoa que partilhava tão surpreendentes informações era G. Nabos; ou seja, Gaudêncio Nabos, um médico imaginário que faz parte da lista de muitas dezenas de alter egos, autores fictícios, heterónimos e semi-heterónimos que Pessoa foi criando e abandonando ao longo da vida. Aos seis anos, sabe-se que inventou um certo Chevalier de Pas que lhe escrevia cartas e lhe povoava a solidão. Aos 18 anos, pelos vistos, continuava a fazer a mesma coisa.
Ao narrar esta descoberta, na sua biografia de Pessoa, já publicada nos EUA e Reino Unido e agora editada em Portugal (Quetzal Editores), Zenith avança duas hipóteses. A primeira é que Pessoa já estaria a pensar na sua reputação póstuma e por isso escreveu a suposta correspondência de Nabos a pensar nos futuros biógrafos, tentando convencê-los da amplitude desejada, embora não real, do seu círculo de amizades. Segunda possibilidade: o jovem Fernando queria deliberadamente enganar a posteridade, fazendo-a acreditar que tanto o dr. Nabos como os inflacionados amigos existiam. E o biógrafo conclui: “O que mais nos espanta é a capacidade de Pessoa viver uma parte tão significativa da sua vida mental e emocional num plano imaginado, literário.” A frase está impressa no livro físico, um tijolo de mais de mil páginas, recebido pouco antes do início da conversa, que tem lugar na sala da sua casa de Lisboa. Já de viva voz, Zenith acrescenta: “Para mim, isto é a prova de que a heteronímia não era um mero jogo, mas antes qualquer coisa de estrutural na identidade de Pessoa.”
Apesar da sua evidência feita de papel e tinta, a biografia ainda lhe parece algo de impossível que se materializou. O contrato de edição foi assinado em 2007, a que se seguiram cerca de 12 anos de pesquisas, entrevistas, releituras, milhares de horas de escrita e reescrita. “A verdade é que não me atirei logo ao trabalho porque tinha projetos em curso, nomeadamente a tradução da lírica de Camões. E mesmo durante o restante tempo fui sempre fazendo outras coisas. Mas se me tivesse dedicado em exclusivo à biografia, seriam ainda assim uns oito anos.” O agente sugeriu-lhe a ideia, na sequência de um texto breve que escrevera para a “Fotobiografia” de Pessoa, feita com Joaquim Vieira. No contrato, apontava-se para 400 páginas. “Nunca imaginei que a coisa assumisse estas proporções. Na verdade, se a versão definitiva chega a pouco mais de mil páginas, é porque cortei 15% da que chegou a ser a versão final.”
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: josemariosilva@bibliotecariodebabel.com