Andy Warhol destronou Picasso. Retrato de Marilyn Monroe é a obra mais cara do século XX: foi vendida por 195 milhões de dólares
Nancy R. Schiff
A mais carismática representação de Monroe, intitulada “Shot Sage Blue Marilyn”, foi a leilão em Nova Iorque esta segunda-feira. O valor estimado era de 190 milhões de euros mas valeu um pouco menos: 185 milhões de euros. Ainda assim, bateu “Woman of Algiers” (1955), de Pablo Picasso
Poucos críticos recusarão o nome de Andy Warhol (1928-1987) no momento de escolher os mais relevantes artistas do século XX, e muitos o elegem como o mais influente da segunda metade. Mas o valor de mercado do artista que um dia disse que “fazer dinheiro é uma arte” nunca esteve à altura dessa perceção ou pelo menos ao nível de outros da sua geração, que bateram recordes em diferentes momentos, como Jasper Johns ou Lucian Freud. Esta segunda-feira, tudo mudou: foi vendida por 195 milhões de dólares (cerca de 185 milhões de euros).
Em Nova Iorque, a leiloeira Christie’s levou à praça a célebre “Shot Sage Blue Marilyn” (1964), integrada na coleção suíça Thomas and Doris Ammann, pelo estratosférico valor base de 200 milhões de dólares (190 milhões de euros). Thomas Ammann foi um dealer e colecionador precoce de Warhol, grande incentivador da realização do seu catálogo raisonné, e a sua coleção inclui obras importantes de artistas como Cy Twombly, Brice Marden ou Sigmar Polke.
O momento não deixou a larga distância a obra de Warhol mais cara até agora, “Silver Car Crash (Double Disaster)” (1963), que foi vendida pela Sotheby’s em 2013 por 105,4 milhões de dólares, como o anterior recorde de arrematação de obras do século XX que foi estabelecido por “Woman of Algiers” (1955), de Pablo Picasso, adquirida em 2013 por 179,4 milhões. Sendo o valor de mercado e a ‘cotação’ histórica coisas diferentes, o acontecimento favoreceu inevitavelmente o lugar da Marilyn ‘azul’ como uma das representações femininas simbolicamente mais significativas da história da arte, onde já estão a “Mona Lisa” de Leonardo, a “Vénus” de Boticelli, ou a “Olympia” de Manet, só para dar alguns exemplos.
Aqui chegados, podemos perguntar pelo que distingue de forma tão dramática um retrato de Marilyn de tantos outros que Andy produziu. Talvez a resposta comece na retratada, o que no caso não é dissociável da relação entre a sua vida e a sua imagem. Nem sempre levada a sério como atriz, mas associada a realizadores como Billy Wilder ou George Cukor, ela foi a epítome da bomba sexual e do glamour, cujo magnetismo sempre conviveu com uma imagem de superficialidade. Casamentos com o jogador de beisebol Joe DiMaggio e o dramaturgo Arthur Miller, e casos amorosos com John e Robert Kennedy, ajudaram a engendrar uma biografia que combina fama, destilação sexual e morte trágica. Se a vida de Marilyn é ela própria intensamente cinematográfica, esses ingredientes parecem fazer dela um concentrado de tudo o que interessou a Warhol na questão da celebridade.
TIMOTHY A. CLARY
Ela foi uma obsessão para outros artistas, com natural proeminência para “Pops” como Richard Hamilton, James Rosenquist ou Mel Ramos, mas também Willem de Kooning antes deles. Ninguém, porém, levou tão longe a devoração da sua imagem como Andy, que a apresentou multiplicada, lhe isolou e multiplicou os lábios, que a pintou de todas as cores, como se quisesse testar os limites de dissipação da sua imagem e o esplendor da sua aura, para a transformar na santa profana de uma contemporaneidade de imagens evanescentes.
Marilyn é a imagem mais visível de uma galeria de celebridades que inclui Elvis Presley, a atriz Elizabeth Taylor, a viúva de John Kennedy, Jackie, Mao Zedong ou Mick Jagger, e que Andy haveria de transformar numa verdadeira linha de montagem. Essa espécie de hagiografia contemporânea criada pelo descendente de católicos polacos de Pittsburgh pôde, entretanto, conviver com representações de uma conhecida sopa industrial ou com imagens da cadeira elétrica. Estes jogos permanentes entre fama e banalidade, tédio e excitação, frivolidade e drama sugeriram que muitos vissem o conjunto da sua obra como uma poderosa constatação da perda do significado das imagens no século XX.
Ao mesmo tempo, algumas das proposições por ele introduzidas nas suas obras prolongam e atualizam provocações colocadas à definição de arte por artistas como Marcel Duchamp ou René Magritte. O crítico Arthur Danto, por exemplo, viu nas caixas “Brillo” verdadeiros fac-símiles das embalagens de sabão que qualquer americano podia encontrar num supermercado, a aurora de um objeto artístico que é indistinguível daquilo que representa e, por isso, só podia ser defendido como arte pela mediação da teoria. Já Hal Foster localizou na sua série “Death in America” um exemplo de um “realismo traumático”, referindo-se ao processo de repetição visual de Warhol, nomeadamente de imagens violentas, como algo que geraria no observador um estado de desafetação e dormência.
Dos seus retratos às naturezas mortas, passando pelos acidentes de viação, Warhol atualiza os géneros e temas tradicionais da história da arte para os mecanismos comunicacionais contemporâneos, tornando explícita a absorção da realidade pela imagem. E isso começa com a sua própria imagem, excêntrica e opaca, e prolonga-se na sua atitude e discurso maquinais, sempre remetidos a uma película exterior, uma persona impassível.
Feitas com técnicas serigráficas diferentes entre si, as Marilyns de Warhol apropriam uma fotografia promocional de Henry Hathaway, do filme “Niagara”, de 1953. Mas na versão warholiana, o rosto da atriz transforma-se numa máscara saturada de cor, de cabelos dourados pálpebras azuladas e lábios de um vermelho explosivo, bela mas distante da imagem real, inumana, e ainda assim, tão sedutora como melancólica.
Uma história fantástica rodeia ainda estas obras. Pouco depois da sua realização, a performer Dorothy Podber pediu a Warhol “to shoot them”, depreendendo naturalmente o artista que ela pretendia fotografá-las. Mas quando Dorothy entrou na Factory, sacou de uma arma e disparou sobre cada uma das pinturas, tendo o artista mais tarde coberto os buracos com tinta. A cena, porém, pode hoje ler-se como uma premonição. Quatro anos mais tarde, Valerie Solanas, uma feminista radical enfurecida, não precisou de um trocadilho linguístico para balear o próprio Andy quase mortalmente. É no seguimento desse acontecimento dramático que Warhol inicia o seu célebre diário, cuja versão televisiva o apresentou muito recentemente a uma nova geração. Costuma assumir-se que o atentado de Solanas terá instigado aquelas páginas. O que é certo é que, além do gossip sobre o circo mundano que o rodeava, que Andy cobre de humor ácido, elas revelam uma faceta mais humana e existencial do artista, e a sua mera existência uma preocupação evidente com a sua imagem póstuma.
Mistério Camisa branca, gravata às riscas, olhar brilhante no infinito. Este é um retrato do artista enquanto jovem. Uma fotografia sem qualquer contexto, exceto os copos e as garrafas de água na mesa... e a legenda: “Jean-Michel Basquiat, Breakfast Set #1, July 1985, Lisbon, Portugal”
É também a questão da memória coletiva que se coloca, quando olhamos a obra que agora é posta à venda. Quando Andy começou a pintar as cinco “Marilyn” desta série, ela já tinha falecido, mas estava longe de ter morrido mediaticamente. Esse é um ponto essencial quando olhamos para a “Shot Sage Blue Marilyn”, que agora vai provavelmente eletrizar os colecionadores. Como no caso de outras obras que representam celebridades retratadas por artistas pop, a posteridade é um momento crítico porque, no tempo de uma geração, ela pode significar o fim do reconhecimento geral do retratado que é parte decisiva na relação com a obra. É hoje mais fácil que um estudante de Belas-Artes leia Deleuze do que reconheça Humphrey Bogart, que não vê na televisão. A sedução imediata da sociedade do entretenimento era a promessa da pop, mas o esquecimento a longo prazo é o seu fantasma ao retardador.
O tempo decidirá se, no futuro, Marilyn será conhecida pelo seu lugar na memória do cinema ou por ser aquela estrela loira que Warhol, o domador de espectros, imortalizou como uma das imagens artísticas do século XX. De uma coisa, porém, não duvidamos: o artista Andy Warhol lançaria um sorriso seráfico sobre esta nossa dúvida.