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Técnica de stop motion brilha na animação nacional com “Os Demónios do Meu Avô”

Técnica de stop motion brilha na animação nacional com “Os Demónios do Meu Avô”

Nuno Beato assina uma longa-metragem portuguesa de animação a justificar sonoro aplauso: correm ventos favoráveis no mundo do cinema português de animação

Correm ventos favoráveis no mundo do cinema português de animação, essa vertente das fitas com bonecos que sempre conviveu de perto com os filmes com gente de carne e osso, mas existe num território próprio. Há prémios internacionais, reconhecimento e uma exposição pública intramuros como nunca antes. Para tanto muito contribuiu a nomeação para o Óscar da curta-metragem “Ice Merchants” — com uma surpreendente estreia autónoma em sala que acolheu mais de 11 mil espectadores! — e as primeiras longas a encontrar o nosso público, como “Os Demónios do Meu Avô” de Nuno Beato, ora a chegar e a continuar um forcejo que já se sabe não ir morrer na praia.

A história centra-se numa jovem executiva que volta à aldeia natal quando tem a notícia de que morreu o avô que a criou. O filme constrói-se maioritariamente na técnica de animação de volumes, tendo uma primeira parte em 3D. E logo nisso há algo que merece realce — e de que gosto muito.

Nuno Beato reserva o 3D para tudo o que se passa na cidade, em cores frias, texturas de polietileno, mostrando uma inabitabilidade anímica, uma vida focada na produtividade, na concorrência, na escalada salarial, na solidão. E organiza a narrativa em planos que se repetem, em ícones avaliatórios, em comportamentos de competição. Ao invés, é na aldeia que há a materialidade das coisas, as rugosidades, as tonalidades quentes da terra, do barro, da luz solar.

O que gosto é da transição, quando Rosa, a protagonista, pisa de pé descalço o chão da aldeia e o desenho se desfaz e transmuta num mundo ‘verdadeiro’. E a ‘verdade’ vem da espessura, da volumetria, das pedras. No fim do filme haverá outra transmutação, os ‘demónios’ a sublimar-se em poeiras estelares. Entre uma e outra, um percurso de descoberta e reparação.

Do lado urbano o que é falso, de plástico, inumano, do outro, campesino, o que é vero, com cheiro, cores, corpos de gente? Se a história congeminada por Nuno Beato e Possidónio Cachapa fosse simples, seria nessa dicotomia rudimentar que se havia de despenhar. Mas a urdidura é bem mais complexa, envolvendo traumas antigos, remordidos rancores, vinganças cruéis, os ‘demónios’ figurados nos populares bonecos de barro sendo a expressão do que habita as almas. E não há, nas gentes camponesas — ou sequer na ruralidade em geral — uma qualquer bondade primitiva, bem pelo contrário.

O filme desenha sem contemplações as agruras e as caturrices de tais lugares. Nem sequer há boa rede de internet na maior parte dos casos... Mas, claro, há um céu estrelado como em mais sítio algum. “Os Demónios do Meu Avô” não assume, em definitivo, a hipotética oposição cidade-campo, nem a trata como questão dicotómica. Evita mesmo pronunciar-se por qualquer dos lados, já que o verdadeiro desfecho do filme não é a escolha de Rosa por um dos lugares, como parece ao longo da maior parte da narrativa. O desfecho é precisamente o esconjuro do ‘demónio’ dicotómico, o que levou a mãe de Rosa a fugir e abandoná-la, e do ‘demónio’ individualista que desencadeou o fosso entre o avô e a comunidade de vizinhos.

Criativas são as marionetas que corporizam personagens (e as vozes, de boa espessura e matiz), melhores são os espaços cenográficos de infinda minúcia e inventiva — tudo iluminado em refinadas gradações e musicado com ecos de bombo e cantochão. O cinema português de animação bem merece que para ele se olhe.

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