“A Pequena Sereia” quer libertar-se e ser gente, já o filme está amarrado ao politicamente correto
Disney
O remake de “A Pequena Sereia”, com atores de carne e osso, estreia-se esta quinta-feira. O filme faz parte da atual estratégia da Disney, que decidiu refazer os ‘velhos’ filmes de animação agora em imagem real
Durante décadas, a Disney teve uma política muito particular. Estreava pendularmente e a espaços largos um novo filme — antes da tecnologia digital ter vindo facilitar a laboração, produzir uma longa-metragem de desenhos animados demorava anos; depois, retirava-o completamente do mercado. Ver um determinado clássico da Disney podia ser impossível em absoluto, antes que a empresa resolvesse uma reposição, por regra na Páscoa ou no Natal. Depois voltava a retirá-lo, até que passasse tempo suficiente para aparecer uma nova geração de jovens infantes que nunca o tinham podido ver. Cada regresso era quase uma nova estreia — e assim a rentabilização dos filmes podia fazer-se indefinidamente.
Quando as videocassetes e, depois, os DVD se tornaram um renovado suporte para a divulgação, a Disney ainda tentou prosseguir essa política, agora aplicada aos múltiplos, mas depressa se percebeu que já não era produtiva. Agora, com as plataformas de streaming, o acesso aos clássicos Disney está a ser universal e instantâneo — todos ao alcance de um click, desde o pioneiro “Branca de Neve e os Sete Anões”, de 1937. E a Disney encetou uma outra estratégia: refazer os ‘velhos’ filmes de animação, agora em imagem real (seja lá o que signifique a expressão ‘imagem real’: incorpora-se neles tanto trabalho de manipulação digital que, de facto, os filmes continuam a ser de animação, só que com atores de carne e osso). Tem sido uma linha de produção a dar muito bons resultados financeiros e bem menos gratificação estética aos apaniguados do desenho animado. Esta semana chega mais um desses objetos, “A Pequena Sereia”.
Em 1989, “A Pequena Sereia”, de Ron Clements e John Musker, marcou o início de uma era. A Disney parecera, desde a morte do seu criador, em 1966, estar num tempo de ramerrame. As longas-metragens de animação iam sendo produzidas, todavia longe do brilhantismo que tinham atingido antes. A empresa estava sentada confortavelmente numa situação prática de monopólio no sector e com poucos estímulos para evoluir. Mas quando alguma concorrência começou a emergir — o sucesso comercial de “Fievel — Um Conto Americano” de Don Bluth, em 1986, produzido pela Universal e pela Amblin, de Spielberg, fez soar os alarmes — percebeu-se que era preciso fazer alguma coisa. É então que emerge Jeffrey Katzenberg, o executivo da Disney que toma as rédeas do que viria a ser um verdadeiro renascimento.
“A Pequena Sereia” foi o princípio de uma época em que a Disney não só acelera a produção de longas-metragens de animação como se dota de valores artísticos de monta — ao mesmo tempo que os resultados nas bilheteiras se tornam estrondosos. Vai buscar, nomeadamente, notáveis compositores de canções — como Alan Menken — e cria filmes que são, de facto, musicais de animação, em que os números cantados e dançados se tornam centrais. A série de obras-primas é espantosa — “A Bela e o Monstro” (1991), “Aladino” (1992), “O Rei Leão” (1994), “Pocahontas” (1995) e por aí fora. E tudo começou com “A Pequena Sereia”.
Halle Bailey protagoniza a nova versão do clássico Disney, agora em imagem real
Como é que Rob Marshall se sai deste remake que ora se estreia? Nem mal nem bem, conjugando o menos bom de dois mundos. Explico-me: os trunfos do filme original não estavam na história, embora ela tivesse alguma coisa de energético (a jovem sereia Ariel que sente curiosidade pelo mundo dos humanos, pelo mundo dos outros, ao ponto de estar disposta a abandonar a sua identidade de ser marinho para aceder a outra condição). Os trunfos eram os ‘números’ musicais e a inventiva visual. Tomemos um caso, epigonal: a canção ‘Under the Sea’ — aliás, vencedora do Óscar. O delírio plástico ia beber às melhores fontes dos musicais, do slapstick, do desenho animado longe de quaisquer peias de tentar mimetizar a realidade. Era a imaginação em roda livre. E sem amarras do politicamente correto.
Rob Marshall não tem os mesmos graus de liberdade. Não ousa, aliás, despir a sua protagonista tanto como no desenho animado. Ainda menos fixar-lhe a idade nos 16 anos originais e a ter de beijar um príncipe — beijo de amor verdadeiro. As criaturas malvadas — como a polvilínea Úrsula — são menos medonhas que as desenhadas (os grandes sustos que nós-crianças tínhamos nos filmes da Disney já se não toleram?).
Disney
Rob Marshall não ousa despir a sua protagonista tanto como no desenho animado. Ainda menos fixar-lhe a idade nos 16 anos originais e a ter de beijar um príncipe
A cada passo, na raça dos humanos como na raça das sereias, afixa-se a multietnicidade (não surge por um motivo razoável, parece cumprimento de quotas — e nota-se), o que é um bocadinho irritante. Os atores são asséticos (mesmo Bardem, no velho rei Tritão). E, estranhamente para um homem que sabe filmar musicais (lembremos “Chicago”), Marshall não consegue algo que valha a pena lembrar (todas as poucas sequências em que, por exemplo, se dança são filmadas em planos tão curtos que, de facto, não se vê deveras dançar). Todavia: o filme caminha, a gente segue, as canções passam e, se calhar, a miudagem gosta. Pois é...
Assine e junte-se ao novo fórum de comentários
Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes